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segunda-feira, 21 de abril de 2014

Santa Rita Durão - O Caramuru

Santa Rita Durão - O Caramuru



A sinopse pode ser escrita assim: após sobreviver a um naufrágio no litoral baiano, o português Diogo Álvares Correia (Caramuru) passa a viver entre os índios Tupinambás.

Ao querer prestar tributo a sua terra natal, donde foi levado quando tinha dez anos, o frei português Santa Rita Durão, sem imaginação e talento, não inovou em nada ao compor este poema épico em mil setecentos e tal. Imitou Camões, fez copy paste das histórias brasileiras de Simão de Vasconcelos, Brito Freire, Rocha Pita, Frei Jaboatão, Pero Lopez de Souza, Gabriel Soares e o Padre Baltasar Telles, alimentou com figuras de retórica e poética, moldou com as partes clássicas de composição de uma epopéia, temperou com informação erudita sobra a fauna e flora brasileira e voilá: sai o poema épico mais sensaborão do arcadismo português.

No entanto, num trecho, numa curta passagem lá pelo canto 36, o frei deve ter sido possuído pelo demônio. Criou uma passagem tão soberba, tão vasta em alcance e emoção que se destoa de todo o resto. Foram 64 versos diabólicos, compostos em transe romântico!

Facilmente eliminaria o que está a mais no poema, ou seja, tudo, os dez cantos, todos aqueles versos decassílabos, com as oitavas rimas camonianas sem sal, e deixaria única exclusivamente esta passagem onde, ao perceber que o seu amado Diogo partira num barco com a sua rival Paraguaçú, com destino à França para lá casarem, a apaixonada Moema atira-se ao mar e nada em direção à nau de Diogo, morrendo, em seguida, tragicamente, cansada e sem socorro, afogada. Sempre quando tento me inspirar para escrever algo incrivelmente romântico, vou a um jardim público semi-movimentado e leio em voz alta para quem quiser ouvir:



É fama então que a multidão formosa

Das Damas, que Diogo pertendiam,

Vendo avançar-se a nau na via undosa,

E que a esperança de o alcançar perdiam:

Entre as ondas com ânsia furiosa

Nadando o Esposo pelo mar seguiam,

E nem tanta água que flutua vaga

O ardor que o peito tem, banhando apaga.



Copiosa multidão da nau Francesa

Corre a ver o espetáculo assombrada;

E ignorando a ocasião da estranha empresa,

Pasma da turba feminil, que nada:

Uma, que às mais precede em gentileza,

Não vinha menos bela, do que irada:

Era Moema, que de inveja geme,

E já vizinha à nau se apega ao leme.



Bárbaro (a bela diz) Tigre, e não homem...

Porém o Tigre por cruel que brame,

Acha forças amor, que enfim o domem;

Só a ti não domou, por mais que eu te ame:

Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,

Como não consumis aquele infame?

Mas pagar tanto amor com tédio, e asco...

Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.



Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,

Quando eu a fé rendia ao teu engano;

Nem me ofenderas a escutar-me altivo,

Que é favor, dado a tempo, um desengano:

Porém deixando o coração cativo

Com fazer-te a meus rogos sempre humano,

Fugiste-me, traidor, e desta sorte

Paga meu fino amor tão crua morte?



Tão dura ingratidão menos sentira,

E esse fado cruel doce me fora,

Se a meu despeito triunfar não vira

Essa indigna, essa infame, essa traidora:

Por serva, por escrava te seguira,

Se não temera de chamar Senhora

A vil Paraguaçu, que sem que o creia,

Sobre ser-me inferior, é néscia, e feia.



Enfim, tens coração de ver-me aflita,

Flutuar moribunda entre estas ondas;

Nem o passado amor teu peito incita

A um ai somente, com que aos meus respondas:

Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,

(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;

Dispara sobre mim teu cruel raio...

E indo a dizer o mais, cai num desmaio.



Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,

Pálida a cor, o aspecto moribundo,

Com mão já sem vigor, soltando o leme,

Entre as falsas escumas desce ao fundo:

Mas na onda do mar, que irado freme,

Tornando a aparecer desde o profundo;

Ah Diogo cruel! disse com mágoa,

E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.



Choraram da Bahia as Ninfas belas,

Que nadando a Moema acompanhavam;

E vendo que sem dor navegam delas,

À branca praia com furor tornavam:

Nem pode o claro Herói sem pena vê-las,

Com tantas provas, que de amor lhe davam;

Nem mais lhe lembra o nome de Moema,

Sem que ou amante a chore, ou grato gema.


O ritmo mantém-se até o fim, até a morte de Moema, afogada. E, como se tivesse sido exorcizado, o frei desperta do transe, volta a mudar o ritmo, e retorna ao normal de toda a epopeia sem graça. Fantástico!





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