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sábado, 26 de julho de 2014

Ariano Suassuna - Auto da Compadecida

Ariano Suassuna - Auto da Compadecida



Tempos difíceis os que vivemos, com o falecimento de três grandes gênios da literatura em tão pouco tempo. Parece mórbido estar a comentar o trabalho de um escritor dias após o seu falecimento, mas não poderia deixar de prestar homenagem a Ariano Suassuna e de como ele me influenciou a tratar dos assuntos mais sérios do mundo, da forma mais simples.

As maiores obras da literatura universal são as mais simples possíveis. Sem subterfúgios, estúrdias e descomedimentos morais, materiais, sociais ou psicológicos,  um objeto literário só faz sucesso se o leitor tomar a obra como verdadeira e o escritor que a escreveu como humilde e não arrogante. Quando os assuntos mais complexos são tratados como se fossem bolhas de sabão, e essas bolhas ao invés de simplesmente estourarem, permanecerem a flutuar no imaginário de quem leu, estamos perante uma obra de arte. E, quando essa obra de arte se mistura com a cultura popular ao ponto de, misturados, tornarem-se peça única que sobrevive no tempo como referência para um povo, estamos perante um clássico.

Auto da Compadecida, clássico, talvez seja a peça teatral brasileira mais complexa já feita e a mais simples de representar. Estão lá o espírito cristão, a traição, a corrupção na Igreja,  a crítica social, a espiritualidade, a redenção do homem por Cristo, a inveja, a cobiça,  mas o povo leitor só se lembra de Chicó, de João Grilo, Severino, António Morais, representados de forma simples, porém, autêntica.

Dizem que Suassuna copiou da literatura de Cordel nordestina todos os episódios da sua peça. O enterro do cachorro, a gaita ressuscitadora, o gato que descome dinheiro,  o julgamento com a intervenção da Nossa Senhora da Aparecida, sim, já existiam, mas estavam dispersos em livrinhos pendurados em cordas! Até como arranjador e compilador o mestre foi genial!

Não é a toa que o presidente do Uruguai José Pepe Mujica escolheu a peça como o seu livro de cabeceira e diz que quando estiver para morrer pretende um cenário igual ao do Juízo Final retratado por Suassuna, para que possa descansar em paz em Rincon del Cerro.

Os publicitários em suas pesquisas de mercado utilizam a técnica da lembrança espontânea para analisarem o recall de uma marca. Se me perguntassem de repente, sem nenhum estímulo, sobre o nome de um personagem qualquer brasileiro representado na dramaturgia, escolheria de primeira:  João grilo!

E a imagem de João Grilo? Didi Mocó, O arlequim italiano num palhaço nordestino, o maior brasileiro de todos!




segunda-feira, 21 de julho de 2014

João Ubaldo Ribeiro - Viva o Povo Brasileiro

João Ubaldo Ribeiro - Viva o Povo Brasileiro



No café do tio João, em Santa Apolônia, onde às vezes costumo sentar para comer o tal do pastel de bacalhau recheado com queijo da Serra da Estrela - uma inovação desse petisco tradicional - há alguns personagens que, estranhamente, gostam de literatura. Daqueles bem caricaturais, com fartos bigodões, que bebem copinhos de vinho tinto de meia em meia hora, os que gostam de literatura contam-se nos dedos, mas os que conhecem Aluísio de Azevedo nunca imaginei:

- Não acho O Cortiço tão importante.

Disse para mim certo dia o Álvaro, um velhaco bigodudo de quase setenta anos, com óculos de fundo de garrafa, cabeludo nas têmporas e careca brilhante no resto do crânio, banguela resignado e com cheiro de morte em baixo dos braços. Eu estava a elogiar O Cortiço para o Tio João e a incentivá-lo a lê-lo, mas o Álvaro quebrou o meu raciocínio com aquele comentário.

Primeiro, não acreditei que ele conhecesse a obra. Depois, fiz uma pergunta cirúrgica para testá-lo:

- E Terras do Sem Fim, Macunaíma ou mesmo Capristano de Abreu?

- Ei, rapaz - ele respondeu limpando uma espuma branca que escorria no canto dos seus lábios - já vi que gostas de literatura.

Eu acenei com a cabeça dizendo que sim, rindo, debochado, preparando-me para ridicularizar o velho.

- Nenhum desses têm categoria. – ele disse, mastigando a língua - Há um livro que descreve muito melhor a realidade do Brasil: Viva o Povo Brasileiro!

Parei de rir e perguntei ao Álvaro, muito sério, de onde ele conhecia Ubaldo Ribeiro?

- Fui eu que escrevi esse livro.

Pois é, respondeu assim, com misto de calma e segurança. Levei na brincadeira, paguei o pastel e a imperial e fui embora. No dia seguinte, ao passar pela porta do café, ouvi um grito lá de dentro:

- Fimper! Chegá cá! Agora!

O velho Álvaro gritava, excitado. Estava em pé, apoiado na sua bengala, com as pernas tortas em forma de arco, prestes a desabar. Entregou-me um exemplar de Política: Quem Manda, Porque Manda, Como Manda. Havia uma dedicatória enorme de Ubaldo agradecendo toda a ajuda que o professor Álvaro havia prestado na tese que havia escrito. Terminava com uns versos esquisitos quem nem pareciam ter lógica e um borrão negro.

- Foi ele que riscou com carvão quando acabou. Estávamos comendo sardinha grelhada na minha casa.

Fiquei admirado e comecei a questionar se o que ele dizia era verdade...

- Melhor amigo não há! Nunca me esqueceu. Eu é que o esqueci! Mas tenho que ir lá, ele já me chamou algumas vezes.

- Ontem disse qualquer coisa sobre Viva o Povo Brasileiro?

- Sim. Fui eu que o escrevi.

- Conta outra.

- Todo mundo aqui da rua sabe disso rapaz. Sabe dessa história. Pergunte ao Capiroba.

- Que tem? Capiroba? O angolano?

O angolano Capiroba era quem servia as mesas no café do Tio João. Já deveria estar aposentado, mas como gostava de trabalhar e de atender e conversar com as pessoas, nunca quis se afastar do emprego. Volta e meia derrubava um prato por pura distração.

- Ele mesmo. Donde pensa que surgiu o nome do caboclo Capiroba?

Soltei uma gargalhada enorme. O Álvaro ficou chateado.

- Olha essa foto. – ele me disse, retirando a carteira do bolso de trás da calça. De dentro da carteira retirou uma foto enegrecida pelo tempo. Era Ubaldo, Álvaro e o angolano Capiroba, sem a carapinha branca que agora ele tinha.O próprio Álvaro tava cheio de cabelo e Ubaldo com um cavanhaque gigantesco.

- Mas... mas... – eu gaguejava, não querendo acreditar – vocês se conheciam de verdade...

- ô Fimper, tás parvo ou quê. O Ubaldo, apesar de ser mestre em administração pública e ciência politica por uma universidadezinha qualquer da California e de dar aulas no Brasil, não sabia nada de política. Não sabia distinguir uma democracia de uma ditadura, na altura em que escreveu esse livro, em Lisboa. Quem acha que o ajudou? Eu!

- Álvaro tem algum conhecimento?

O homem riu e mostrou a gengiva. Depois disse, vaidoso:

- Da vida, amigo, da vida. Mas sabia o bastante para que Ubaldo me chamasse de professor, como viste na dedicatória.

- Quer me dizer que você sugeriu o nome do Capiroba para o caboclo do livro?

- Não só. Sugeri quase todos os personagens. Perilo Ambrósio Góes Farinha, Amleto Ferreira, Maria da Fé, Vevé, Patrício Macário, Nego Leléu e Vú, Dafé, Patrício Macário, MariaLuzia, todos esses personagens nasceram daqui, das ruas onde você pisa todo dia para tomar o café.

- Não posso acreditar.

- Ubaldo queria fazer uma crónica. Uma historinha, tás a ver? Eu é que o incentivei a aumentar aquilo. Ninguém aqui em Portugal escreve crónica! Viva o Povo Brasileiro é um livro grosso, pesado, de 700 páginas, livro pra gente grande. Mas só é assim porque eu mandei Ubaldo escrever dessa forma. Um amigo dele, um maluco chamado Tarso de Castro veio visita-lo e o convenceu a voltar para o Rio. Foi por isso que a história mudou completamente. Se eu continuasse a escrevê-la, o livro não seria nada assim. Seria maior. O Ubaldo era preguiçoso. Quis escrever sobre os 400 anos do Brasil. Eu queria que ele escrevesse sobre três mil anos. Sobre toda a história dos portugueses. Sobre os árabes, que é a raiz dos portugueses. Sobre os romanos. Não se pode entender a identidade cultural dos brasileiros sem entender os romanos. De que adianta ele dizer coisas sobre o Perilo Ambrosio agora, se o povo não o ligar aos portugueses. O Tarso de castro não o devia ter levado. Comigo, ele iria escrever um cânone.

- O livro é considerado um clássico no Brasil.

- No Brasil, mas isso nunca vai acontecer nos Estados Unidos. Lá, eles dão valor às sagas, aos monumentos históricos. Em ir ao fundo da verdade. O Ubaldo quis ficar pelo superficial, pela brincadeira, pelo gozo. Eu sempre disse isso para ele. Foi por isso que ele, a certa altura, deixou de me falar. O New York Times arrasou o romance.

- Mas ele escreveu sobre o angolano Capiroba.

- Fimper, meu amigo, o Capiroba original era para ser dentista, na nossa versão original. Mas ele mudou aquilo quando chegou ao Brasil, e o tornou num personagem antropófago que come holandês. Ele mudou tudo, pá! O Perilo por exemplo...

- Que tem?

- Aquela estória de que ele matou um escravo para sujar de sangue as próprias vestes, exibindo-se diante dos soldados brasileiros como um guerreiro ferido, herói da Independência do Brasil, fui eu que contei para ele. Isso aconteceu de verdade, mas foi aqui em Lisboa, em Campo de Ourique, com o Gil que para enganar a mulher e dizer que havia levado uma surra na rua e por isso não ter voltado cedo para casa, matou um gato e se lambuzou de sangue. O Ubaldo era assim mesmo. Gostava de pegar as minhas histórias. Gostava de aldrabar, tás a ver? Gostava de se dizer do povo, tás a ver, mas não era. Ele gostava de falar mal da elite, mas era amigo de presidentes da República, personalidades internacionais, artistas, publicitários, empresários, toda a elite brasileira vinha visita-lo por aqui. Eu conheci uma vez aquele cineasta famoso, o Glauber Rocha, grande amigo dele. Granda maluco. Ficou horas a filmar-me, sem dizer uma única palavra. Depois eu perguntei o que era aquilo e ele disse que só a minha imagem já era o bastante. Gostava de um uísque o gajo!

- Quem? O Glauber? – eu estava nesse momento um pouco perdido com todas aquelas informações.

- Os dois. Quer dizer, os três. Mas agora não bebo mais, com tu sabes. Só uns copitos de tinto às refeições.

- O Álvaro é professor de quê?

- Literatura. Que mais podia ser? Fui eu que apresentei Rabelais ao Ubaldo. Entreguei um exemplar para ele de Gargantua, mas ele nunca mais me deu de volta. Queria incentivá-lo, queria mexer naqueles ossos enferrujados. Queria que ele usasse a hipérbole. Pergunte a ele qual o livro de cabeceira que ele tem: Apokolokyntosis de Sêneca. Quem lhe deu? Quem lhe deu? E com dedicatória e tudo?

- Álvaro?

- Acertaste, rapaz!

Fui embora do café com a cabeça fervilhando. Dei uma boa releitura em Viva o Povo Brasileiro para encontrar alguma coisa que pudesse se encaixar com tudo o que ouvi. Parei logo nas palavras de Ioiô Lavínio:

“... Tivemos o infortúnio de ser colenizadoa por Portugal, que inclusive só mandava bandidos para aqui. Por isso é que o Sete de Janeiro é para mim a data mais feliz, por que é quando se comemora a expulsão dessa canalha. Não adïantou nada, porque o mal já estava feito, mas pelo menos tivemos o gostinho, eu não suporto português, não gosto nem de conversar com português, me dá raiva...”

E fiquei pensando se Ubaldo estava, como sempre, a brincar e a gozar com tudo à sua volta, ou se era na referência de Santa Apolônia no bar do Tio João que havia bebido o seu uísque.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Nadine Gordimer - Tempos de Reflexão

Nadine Gordimer - Tempos de Reflexão


Nadine, a mais lúcida de todas mulheres, em sua homenagem escrevo, triste, para compensar a perda da sua partida.

Vi uma emocionante entrevista, certo dia em 2007, na Roda Viva da TV Cultura brasileira: Nadine Gordimer estava sendo entrevistada por cerca de oito pessoas ligadas de alguma forma à literatura, que faziam perguntas dos mais variados tópicos e Nadine, no alto dos seus 84 anos, respondia a todos com educação, respeito, calma e uma lucidez impressionante.







As palavras que fugiam da sua boca, devagar, pausadamente, pareciam preencher o vazio espacial da imagem que criei da pessoa de Nadine ao ler Telling Times (ou Tempos de Reflexão, como a Editora Globo traduziu), para mim o seu melhor. O livro é uma centena de fragmentos de uma prosa não ficcional que a escritora compôs aleatoriamente sobre diversos temas ao longo de cinquenta anos. Podemos notar, se quisermos e conseguirmos decompor em ordem cronológica, o amadurecimento de uma escritora ao longo do seu próprio tempo de vida e de como manteve esperta a sua lucidez única. Escrever sobre si mesmo, é difícil; escrever sobre si mesmo, sendo completamente verdadeira e transparente em tudo o que foi gravado por meio das palavras é dificílimo, para não dizer amotinador, já que o rumo da sua própria personalidade pode ser alterada; Na entrevista da Roda Viva, Nadine, ao falar sobre si mesma de forma verdadeira, sendo coerente com tudo o que escrevera no passado, mais lúcida que um jovem de 20, apenas confirma dentro de mim todo o respeito que sempre entreguei a esta grande escritora.

Faz-me lembrar outro mestre pensador, tão lúcido quanto ela: José Saramago. Mas dele não falarei uma única palavra...






terça-feira, 15 de julho de 2014

Krishnamurti - Liberte-se do Passado

Krishnamurti - Liberte-se do Passado




Foi  dona Anabela que me apresentou a Krishnamurti. Foi ela que me fez entrar para o Núcleo Cultural Krishnamurti em 2004, onde desde então frequento os encontros informais que servem para se discutir e se assistir vídeos do mestre. Dona Anabela nunca se assumiu como autoridade, embora eu sempre a visse como tal. Ela me ensinou que não existe O melhor livro de Krishnamurti, mas sim livros que se complementam e compõe A grande obra. Este, Liberte-se do Passado, reúne os principais assuntos que ele gostava de abordar nas suas conferências que realizava pelo mundo. Por curiosidade, resolvi colocar todo o texto dentro de um aplicativo de word cloud e foi isso que recebi: 

 


  
Para alguns pode ser surpreendente, mas para quem estuda suas conferências a fundo é apenas a constatação de que os seus ensinamentos estão carregados de palavras positivas que ficam gravadas no nosso inconsciente. Em destaque, como não podia deixar de ser: amor.



domingo, 6 de julho de 2014

Luigi Serafini - Codex Seraphinianus

Luigi Serafini - Codex Seraphinianus




Quando procuro um tempo só pra mim, de introspecção, reflexão, onde procuro refrescar os meus pensamentos e voltar a fingir ser criança num mundo de total desconhecimento mas de positiva descoberta, mergulho nas páginas esmagadoramente criativas do Codex Seraphinianus.

Aviso logo: o livro não tem nenhum significado.

É uma extensa enciclopédia ilustrada sobre um mundo imaginário, escrito numa língua desconhecida, com alfabeto indecifrável, onde o autor utilizou signos que nunca existiram e que remetem para centenas de outros novos e criados especialmente para o livro. É dividido em duas partes: a primeira, onde relata a natureza, a segunda, onde descreve as pessoas. Os mais de mil desenhos que compõe a obra também são de impossível compreensão.

Muitos historiadores, biógrafos, linguistas, escritores, etc, como acontece sempre com obras dessa dimensão, tentaram e tentam até hoje entender, decifrar, rotular, catalogar o livro, mas o arquiteto italiano Luigi Serafini, humildemente, explica que nunca conseguirão essa proeza, pois o Codex tem exatamente este objetivo: nenhum acadêmico, nenhum adulto, conseguirá de forma voluntária regredir sua mente ao zero, ou seja, apagar todas as informações que lhe foram ensinadas, ao ponto de se tornar de novo analfabeto, ignorantemente infantil, consciente de que há um alfabeto e que há símbolos para tudo, mas incapaz de interpretar as informações.

Experimentem presentear uma criança com o Codex Seraphinianus. Será para sempre o melhor livro da vida dela!