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sábado, 8 de novembro de 2014

Nuruddin Farah - Maps



Nuruddin Farah - Maps



Quem gosta de reggae de raiz conhece Marcus Garvey, o homem que influenciou o rastafári com seu pan-africanismo. Para Marcus Garvey, o imperador da Etiópia Haile Selassie, era um messias vivo, que iria libertar os negros africanos da América e conduzi-los de volta à sua terra natal. Nuruddin Farah com sua trilogia Blood in The Sun resgata as memórias de Haile Selassie, mas de uma forma muito subtil. Sem darmos por isso, conduz-nos de volta aos tempos de conflito em África, onde a guerra fria manipulava os Estados como se fossem opositores num jogo de Xadrez. A guerra fria despoletou conflitos no mundo inteiro. Lembro-me da Guerra coreana, da guerra civil chinesa, da revolução húngara, da crise dos mísseis de Cuba, da invasão da Checoslováquia, da guerra do Vietnã, Afeganistão, Chile, República Dominicana, Indonésia, a lista é extensa. 

Blood in the Sun fala especificamente sobre a guerra da Etiópia (URSS) e Somália (USA), em 1977, que terminou, como sempre, sem vencedores nem derrotados, mas com muitos mortos e feridos. 

O melhor da trilogia é o seu primeiro livro Maps, e é o melhor porque mostra a técnica da narração na segunda pessoa como poucos livros até hoje conseguiram. Não há técnica mais intrusiva que a narração na segunda-pessoa. O narrador parece falar com nossos miolos, com cada uma das nossas células neuronais, conversas privadas e segmentadas, sem que tenha a nossa devida permissão. Não queremos, não deixamos, mas mesmo assim ele penetra, dizendo sempre você, você, tu, tu. Khrishnamurti fazia isso muito bem, mas no sentido da interrogação. Nuruddin Farah, com seu Maps, é o mestre da afirmação. Suas palavras aparecem de repente, em blocos de parágrafos, como se fossem narrações pré-gravadas para explicar as imagens que passam na retina da nossa mente. O mais assustador é quando queremos nos desligar do personagem principal Askar e esquecer do livro, e a sua voz em off continua a ribombar você, você, tu, tu...e retornamos ao livro, mesmo contra a nossa vontade.


Para terem uma ideia ainda hoje mantenho este livro sob o meu travesseiro. 




domingo, 2 de novembro de 2014

J.K. Huysmans - La-Bas



J.K. Huysmans - La Bas



Esse livro é para ser lido em três etapas.

Primeiro, empreender a difícil leitura de A Rebours, para compreender a mente alucinada do autor.

Segundo, absorver a paranoia do personagem Durtal até a exaustão. É impossível ler a fantástica obra de Huysmans e não ficar com a convicção de que Gilles de Rais é um monstro.

Terceiro, ler a obra do falecido e desconhecido Gilbert Prouteau sobre de Rais. O amplo julgamento de Gilles de Rais retratado no livro de Prouteau, é um dos grandes acontecimentos desse século. Com minúcias, o francês consegue quebrar todas as nossas convicções de que o grande assassino da história era realmente um assassino, e coloca a carga toda na Igreja Católica, que passa a ser a grande culpada.

Depois de analisarmos estas três partes, podemos começar a fazer qualquer reflexão sobre La-Bas. Mas aí já será tarde de mais, pois já estaremos mortos.





sábado, 1 de novembro de 2014

Joseph Conrad - O Coração das Trevas


Joseph Conrad - O Coração das Trevas





Conheci Conrad através de Nostromo, que considero imbatível. Coração das Trevas, veio por consequência. Os parágrafos do livro, principalmente os ligados ao rio, tornaram-se, com o tempo, inspiração.

"O estuário do Tamisa rasgava-se como a boca de um canal interminável. Céu e mar uniam-se ao largo, sem traço de separação, e as velas crestadas das barcaças, a subirem com a maré, pareciam imobilizar-se no espaço luminoso como fardos de lona muito tensa, vermelhos, onde luzia o verniz dos mastros.
As margens baixas corriam para o mar e sobre elas carregava uma névoa diluída na planura. O ar estava sombrio acima de Gravesend, e mais longe parecia condensar-se numa treva desolada que pesava, imóvel, sobre a mais vasta e grandiosa cidade do mundo."

Foi o Marquinhos, um fanático por Coppola, que me levou a ver o filme que ele achava o maior de todos os tempos. Entrei na sala contrariado, com pressa, pois estava preocupado com uma situação que estava a acontecer fora do cinema. Procurei a fila onde eu pudesse esticar as pernas e sentei na poltrona mais confortável,  sob os protestos do funcionário do cinema que dizia que ali não era o lugar que estava marcado no meu bilhete. Como o filme estava para começar, ele recuou...

"Is this the end, beaultiful friend, the end..."

Esse filme não podia começar de forma pior. Doors! Só que o Jim Morrison cantava daquela vez com um tom diferente. Que música era aquela que entrava pelo meu ouvido como um sussurro de um morto que prevê a minha própria morte? O ventilador espalhando ar quente pelo quarto, o capitão sangrando, a guerra, a impotência, a solidão, em poucos segundos eu fazia parte do filme, primeiro na pele do capitão que teve a estranha missão de matar um coronel que se voltou contra o seu país ou contra as estruturas da guerra ou mais profundamente, contra os objetivos da guerra, depois como um mero soldado coadjuvante navegando nas águas do rio junto com os jovens soldados que acompanhavam o capitão...

"No encalço dos burros vinha um conflituoso bando de negros lamurientos com os pés magoados; uma porção de barracas, cadeiras de campanha, malas de ferro, caixas brancas e trouxas castanhas foi atirada para o chão do cercado, reforçando o mistério do caos daquele posto. Chegaram cinco carregamentos, todos com o mesmo absurdo ar de fuga depois de um saque de lojas e armazéns, ao ponto de parecer que transportavam para a selva um espólio destinado a divisão equitativa."

No escuro, virava a cabeça e olhava para as pessoas que observavam o filme e não via ninguém me olhando. As pipocas estavam uma delícia. O vício que herdei da minha mãe de comer pipoca numa velocidade alucinante, foi multiplicado por dez por causa daqueles copos gigantes ao meu colo e a fome que apertava o estômago. Cada pipoca que mastigava parecia uma bala que explodia. A cada pipoca que comia virava para trás para ver se incomodava as pessoas por causa do barulho. E aí veio aquele som de Wagner que já conhecia de um comercial de TV. Sempre me imaginei a escutar aquela música como trilha sonora de um momento feliz, numa excursão por alguma cidade da Grécia, num ambiente familiar, mas nunca poderia imaginar escutá-la naquele contexto: guerra, fogo, pó, loucura, luzes, muitas luzes. Os parágrafos do livro começaram a vir à catadupa...

"Andávamos às curvas, a dez pés da margem. Tive de inclinar-me para fora, afim de rodar a portada, e entre a folhagem vi um rosto ao nível do meu, a fixar-me com ferocidade, e de repente, como um véu que aos meus olhos se abrisse, distingui peitos, braços, pernas nuas e um luzir de olhos no fundo da complicada sombra - o mato a formigar de membros humanos que se moviam polidos, cor de bronze. Os ramos abanavam, sacudiam-se e estalavam, as flechas levantavam voo e a portada da janela lá se fechou.

Não conseguia parar de pensar no livro. Iria enlouquecer, por isso levantei-me para comprar mais pipocas (já tinha devorado as que comprei). Afastei-me facilmente das poltronas que me comprimiam e deixei o copo de Coca-Cola no reservatório da poltrona esperando por mim. Atravessei o cinema debaixo de fogo, que eu sabia que vinha da tela, mas que me assustava mesmo assim. Comprei mais dois copos de pipoca gigantes. Corri com os copos de pipoca para dentro do cinema novamente e sentei na primeira poltrona vaga que vi, longe da entrada. 

"I can get no, satisfaction"

cantava um rio pintado de vermelho ao fundo da tela, para o delírio do homem que sentava ao meu lado. Essa música eu conheço, quem não conhece? Devorei a pipoca dos dois copos enquanto prestava atenção ao corredor do cinema para ver se alguém estava passando mal. Comecei a ficar com sede. Levantei e fui à procura do meu copo de Coca-Cola que deixei na minha primeira poltrona que sentei. Estava muito escuro e não conseguia achar o lugar. Nessa altura, andava de fileira em fileira à procura do meu copo. Sentei imediatamente na primeira poltrona vazia que vi. Com a lanterna, o funcionário do cinema indicou onde eu me encontrava pela primeira vez quando me sentei. Agradeci e voltei para o meu lugar onde eu podia esticar as minhas pernas perfeitamente. A música recomeçou. Aquela música assustadora do início. Aquela música me transmitia uma sensação angustiante. Por que colocaram essa música no filme? Um homem todo pintado surgiu do nada empunhando uma espada de sabre e decapitou um homem gordo, que parecia ser aquele coronel rebelde. Ao mesmo tempo sangravam um boi da forma mais horrenda possível. E a música continuava. Por que não desligavam os auto-falantes? O nervoso era tão grande que amassei o copo de Coca-Cola (que estava pela metade) com as mãos, molhando a senhora que estava ao meu lado. Ela reclamou. Lá vinha Conrad...

Eu nunca tinha visto, nem espero tornar a ver, coisa parecida com a transformação que se dera nos seus traços. Não, emocionado eu não estava. Estava fascinado. Como se um véu se tivesse rasgado. No marfim daquele rosto vi uma expressão de orgulho sombrio, indomável poder, de abjecto terror - de um desespero intenso e sem esperança. Naquele supremo instante, de integral conhecimento, estaria ele a reviver a vida em todo o pormenor, com os seus desejos, tentações e renúncias? Deu um grito sussurrado a uma imagem qualquer, a uma visão qualquer - gritou duas vezes, um grito que não passava de sopro... "O horror! O horror!" 

E eu só escutava uma voz surgindo de todos os lados: "horror!", "horror!", "horror!", o homem pintado, a escuridão – maldita hora que entrei nesse cinema! 





sábado, 23 de agosto de 2014

Tchekhov - A corista e outras histórias

Tchekhov - A corista e outras histórias





O vigor de Tchekhov está na concisão. Nas suas palavras, as letras são riscadas se não tiverem força; nas suas frases, as módicas palavras que existem tem uma necessidade; nos seus poucos parágrafos há somente frases necessárias; e, nos seus curtos capítulos, há somente alguns parágrafos imprescindíveis. Para alguns imitadores isso tem a ver com metros… centímetros… milímetros. Para ele, resume-se a pontos, no caso pontos de perceção total. Tudo conta pra ele, até a pontuação, até o espaço entre parágrafos. Não quero dizer que Tchekhov é curto, econômico, superficial; pode ser, sim, na quantidade de letras que coloca no papel, mas nunca no alcance e profundidade, pois torna tudo o que escreve longo e difícil de compreender. Tchekhov abreviava tudo o que podia, até ele mesmo. Abreviado ao máximo, ele sumia da escrita. Esquecemos que ele existe. Só nos lembramos dele quando acabamos de ler um dos seus contos. Mas aí ele aparece para ficar e dura como Evatota. Ele consegue isso porque não tem estilo nenhum. Não tem carisma. Nunca veremos um Tchekhov assustado, ou cansado, ou triste, ou deprimido, ou alegre; nunca veremos um Tchekhov com vontade de manipular uma frase ou criar uma figura de linguagem. Isso são subterfúgios que ele dispensava. O homem não era vaidoso. Ele colocava-se atrás do que escrevia. O importante para ele estava no sentido e no sumo que o leitor iria extrair de cada parágrafo. E a força da sua escrita advém dessa característica peculiar. Por causa disso, Tchekhov não qualificava nada, ou melhor, não opinava sem razão: para ele a opinião verdadeira e bem construída era dez vezes mais poderosa que uma qualificação prematura. Afinal o leitor, e especialmente o leitor de Tchekhov, aprecia que se diga o que é de forma verdadeira, sem rodeios ou prévias considerações. Um leitor de Tchekhov irrita-se quando encontra em textos de outros autores adjetivos e advérbios em abundância. Um leitor como esse, treinado, já nas primeiras frases coloca de lado um livro que tenha adjetivos erradamente empregados. O que ele procura são os verbos e os substantivos. São nesses dois conectores que ele vai se segurar como polo positivo e negativo para carregar o seu gozo. De tanto procurar, porém, acaba sempre por voltar ao mestre russo, o único que pode satisfazer esse vício terrível. Em muitos textos que li, até mesmo clássicos que me influenciaram como Os Thibaults ou Child of Pleasure de Gabriele D'Annunzio, senti náuseas pela prosa enfadonha e excessivamente rica. Nunca senti isso com Tchekhov. Pelo contrário, a sua prosa é como Dramim. Um vez me disseram que só Dalton Trevisan seria capaz de reduzir o calhamaço do último capítulo de Ulysses de James Joyce a um conto de duas páginas no máximo e eu respondi que sim, só ele, porque não teria em competição Tchekhov. Ele nunca se aventuraria a tal façanha, porque um monólogo como aquele era descartável. O monólogo interior do mestre russo era diferente, era original. Vinha das pausas, das entrelinhas, do subtexto, das palavras que resumiam um parágrafo, da apropriação indevida do pensamento do leitor como enriquecimento do seu texto vazio. A corista e outras histórias (um mero exemplo, já que ele criou milhares de outros contos curtos antológicos) sofreu influência direta do sistema Stanislaviski, com seu conceito de subtexto e deixo aqui um exemplo:

 

1º de outubro de 1883

 
ELE BRIGOU COM A ESPOSA

Fato verídico

– Mas que inferno! Você chega em casa do trabalho, faminto como um cão, e só o diabo sabe como te alimentam! E você ainda não pode reclamar! Se reclama, na mesma hora: choro, lágrimas! Que eu seja excomungado três vezes por ter me casado!

Dito isso, o marido jogou com força a colher no prato, levantou-se de um salto e saiu furioso, batendo a porta. A esposa começou a soluçar, cobriu o rosto com o guardanapo e saiu também. Acabou-se o almoço.

O marido foi para o seu gabinete, atirou-se no divã e enfiou o rosto numa almofada.

“Foi o demônio que te empurrou para casar!”, pensou ele. “Que maravilha, a vida de casado! Deus me livre! Mal uma pessoa se casa, já quer suicidar-se!”

Um quarto de hora depois ele ouviu uns passos leves atrás da porta...

“É, é sempre assim... Me ofende, me insulta, e agora fica andando na frente da porta, querendo fazer as pazes... Ora bolas! É mais fácil eu me enforcar do que fazer as pazes!”

A porta se abriu com um leve rangido e não se fechou. Alguém entrou e, com passos leves e tímidos, dirigiu-se ao divã.

“Deixe estar! Pode pedir perdão, suplicar, soluçar... Figa para você! Nem pensar! Pode morrer, que não ouvirá uma palavra minha... Estou dormindo, como vê, e não quero conversa!”

O marido enfiou ainda mais o rosto na almofada e ficou roncando baixinho. Mas os homens são tão fracos quanto as mulheres. Eles amolecem e ficam mansos com facilidade. Ao sentir um corpo quente atrás de suas costas, o marido, por teimosia, moveu-se para mais perto do encosto do divã e encolheu a perna.

“É, agora estamos nos achegando, nos encostando, adulando... Daqui a pouco ela vai dar beijinhos no meu ombro, vai ficar de joelhos. Não suporto esses dengos! Apesar disso, vou ter de perdoá-la. No estado dela, faz mal ficar nervosa. Vou torturá-la um pouquinho, como castigo, depois perdoo...”

Ele ouviu bem perto do ouvido um suspiro profundo. A seguir, um segundo e um terceiro... O marido sentiu no ombro o roçar de uma mãozinha.

“Bom, deixa pra lá! Vou perdoar pela última vez. Chega de torturá-la, coitadinha! Ainda mais que a culpa foi minha! Fiz um barulhão por uma besteira...”

– Está bem... já chega, minha pequena!

O marido esticou o braço para trás e abraçou um corpo quente.

– Eca!!

Ao seu lado estava deitada sua enorme cadela Dianka.

9 de junho de 1884




Salman Rushdie - Os filhos da meia-noite

Salman Rushdie - Os filhos da meia-noite



Nós, os amantes de literatura, sabemos dar o devido valor a um prêmio literário: 0.


Um prêmio literário não vale nada, nem para quem o recebeu, nem para quem o julgou. Os galardões literários são uma jogada de marketing estratégico com múltiplos objetivos, cada galardão com o seu. O leitor atento, amante da literatura, está à margem das distinções estratégicas; é independente, e brinca sozinho com as letras do seu pensamento.

No entanto, se algum dia lançassem um prêmio de Carisma Literário (esse sim, um prêmio que não existe, mas deveria existir), um livro certamente iria ganhar, mesmo estando em shortlist a Crônica do Rei Pasmado ou Pé na Estrada. Esse livro é Filhos da Meia Noite de Salman Rushdie.

Filhos da Meia Noite é, entre outras coisas, uma história de realismo mágico passada no pós-independência da Índia, história perspectivada na primeira pessoa através das lentes do indiano Salim Sinai. Nascido na meia-noite do dia da Independência, em 15 de agosto de 1947, Salim, junto com as 1001 outras crianças da maternidade, ganham poderes mágicos, uns do bem, outros do mal. São uma espécie de esquadrão X-Men indiano. O poder de Salim é a telepatia, que lhe permite reconstituir a história de sua família desde 1910 e examinar os acontecimentos políticos e culturais da Índia. Nascido de pais hindus pobres, criado por muçulmanos ricos, Salim é um X-man bastardo e uma metáfora para a nação pós-colonial.

Como escritor e vivendo fora do meu país, tentei por diversas vezes capturar o meu Brasil imaginário através das imperfeições da memória da infância, mas nunca eu, nem ninguém, conseguirá penetrar tão fundo como as latentes e multicoloridas conexões carismáticas da telepatia mágica de Rushdie, ele também, na altura, um escritor migrante vivendo em Londres.

Abaixo, alguns prêmios “importantes” de Filhos da Meia Noite:

Prêmio Booker para ficção

Booker dos Bookers, 25 anos de Booker prize

Melhor dos Bookers, 40 anos de Booker prize




sábado, 9 de agosto de 2014

Roger Martin Du Gard - Os Thibaults

Os Thibaults - Roger Martin Du Gard




“Respeito muito os paleógrafos, mas nunca houve um grande escritor paleógrafo. 
Lógico, com execção de Roger Martin Du Gard”
Antônio Iuskx – meu professor de literatura


Muito acelerado, não temos tempo a perder. Sabemos quando vamos morrer, qual a nossa expectativa de vida. Colhemos informação na net instantaneamente, com impaciência ficamos quando algo não nos chega automaticamente. Tem-se pouco tempo, as noites são curtas, na televisão assistimos séries densas e complexas de no máximo meia hora. Tudo nos chega mais denso, mais sintético, comprimido, arrumado, mastigado, testado, traduzido, facilitado. Pudera, Somos bombardeados por informações que nos chegam de todos os lados, da hora que acordamos, até a hora de dormir. Mesmo dormindo a informação não cessa. Temos que aplicar filtros. Temos que restringir a informação, se não enlouquecemos. No trabalho somos multifuncionais, aprendemos mais do que devíamos e executamos mais do que alguma vez sonhamos quando estudávamos ingenuamente na escola. Estamos conectados em todo lado e de todo o mundo aparece algo que tende a nos repuxar para a conexão que utopicamente queremos abandonar.

Portanto, no dias que correm, o que leva um ser humano a querer ler um livro de 2.950 páginas, que pesa quase 15 quilos?

Aos vinte e cinco anos fiz esse questionamento quando resolvi empreender a leitura dos Thibaults de Roger Martin Du Gard, não só os tomos traduzidos por Stuart Gilbert, como também a longa parte VII, da guerra, e o epílogo. Na altura estava obcecado por Andre Gide por causa de um texto que ele havia escrito sobre Dostoiévski - o melhor que havia lido sobre o grande mago. Se Gide era amante de Du Gard e reconhecia nele o escritor perfeito, eu, por encadeamento compulsivo, senti-me tentado a ler a obra.

Tornou-se a minha maior motivação vencer a vontade de desistir daquelas páginas longas, de parágrafos compridos, com descrições exaustivas de detalhes frívolos, de problemas banais da família Thibault e seus amigos idiotas, e parentes transviados,  e amantes aborrecidos (Evelyn Waugh escreveu muito melhor em Memórias de Brideshead).

Qualquer um pode ler qualquer coisa, mesmo um analfabeto.

Alguns conseguem ler, compreender, interpretar, analisar, discutir, absorver e ensinar. Ler Os Thibaults, no entanto, vai mais além. Para resistir à vontade de desistir precisamos penetrar naquele romance-rio não como leitores, mas como personagens subservientes. Quando descobri essa fórmula, esse meio, essa tática, vi-me, durante 8 meses (o tempo que demorei para chegar ao epílogo) como um personagem secundário perambulando pela história.

Esse estágio de (des)graça atingiu o seu clímax no sexto livro (ou sexto capítulo), o da morte, em Paris, do velho e chato Óscar Thibault, um conformista social e religioso que nunca aceitou as posições dos seus dois filhos Jacques e Antoine. Nunca nenhum autor conseguirá atingir o grau de meticulosidade que envolve a morte natural de uma pessoa, como fez Du Gard nesse capítulo. O desenvolvimento da narrativa no longo espaço de tempo percebido pela iminente morte de Óscar é avassalador. Como personagem secundário e bajulador, na altura eu era o mordomo do velho e passava quase despercebido. Levava-lhe chás e biscoitos, lia-lhe as cartas, escrevia-lhe bilhetes para os filhos e amantes, administrava-lhe morfina.

O final, o da guerra, escrito como um diário, é espetacular para quem procura estudar as origens do culminar da primeira guerra mundial na perspetiva francesa (Du Gard combateu na linha de frente e dizem que foi aí que descobriu a sua bisexualidade), no entanto, nunca cheguei a terminá-lo, porque havia ficado extremamente cansado pela angústia que vivi com a morte do velho Óscar, que me fez rever incessantemente, mesmo após alguns anos, o seu crematório e as cinzas flutuando sobre as tumbas da sua Fundação.