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domingo, 27 de abril de 2014

Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas

Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas




Lá no (de)sertão do sul da Bahia, onde o rio São Francisco dá lugar à caatinga, o que não falta é literatura de cordel inspirada na vida do cangaço e de jagunços. Mesmo antes de Guimarães Rosa nascer, podemos contar aos milhares a quantidade de folhetins com inspiração nos Brigantaggio italianos.

Consul na Europa, diplomata viajado, médico, inteligente e culto, o que Rosa fez foi trazer arte à literatura de cordel. Trouxe Dom Quixote para o Liso do Sussuarão. Doou a sua própria erudição para a boca do jagunço Riobaldo. Bebeu de todas as fontes, mas na hora de se expressar, fê-lo de forma genuinamente brasileira.

Não faço ideia se Rosa foi o primeiro a transformar os conflitos universais da literatura mundial numa linguagem regionalista tipicamente brasileira, mas foi o primeiro a trazer a erudição para a boca de um jagunço. Ao fazer isso, misturou toda uma geração. Rosa inspirou, por exemplo, Raul Seixas, a agregar o autêntico rock americano ao ritmo e linguagem puramente brasileiras.





Na obra, o sertão é visto e vivido de uma maneira subjetiva. Nunca iremos saber realmente quais foram as reais emoções, sentimentos e pensamentos de Riobaldo, como nunca iremos saber o que se passou na cabeça de Rosa para compor o monólogo. Quem é compadre Quelemém? Diadorim foi mesmo enterrado(a)? O diabo estava ou não estava na encruzilhada?

Nunca li esta obra prima do início ao fim. Sempre li trechos. Trechos de frente para trás e de trás para frente. Sempre em voz alta, para ouvir os sons do livro, muitos e diversificados. Guardada as devidas proporções, tento colocar-me como um enólogo a provar um Montalcino raro. O enólogo não precisa e não quer beber toda a garrafa. Muitas vezes nem chega a mandar o líquido para dentro: boceja, gargareja e cospe. Sempre me coloquei nessa posição ao ler Grande Sertão: Veredas.

“Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta. Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra; e àquele que bate, a porta será aberta. – Mateus 7:7-8

Devido a sua subjetividade, toda vez que volto ao livro encontro algo novo e lembro do versículo de Mateus.

Atenção: Antes de bater à porta de Grande Sertão: Veredas é preciso primeiro pedir ao instituto Butantan um frasquinho do soro antilonômico. Sem ele corre-se o risco de se ter queimaduras nos olhos, inchaço no cérebro, vermelhidão no pensamento, e em casos mais graves, hemorragia e morte dos nossos próprios conflitos internos (perigo!).




quinta-feira, 24 de abril de 2014

Yukio Mishima - O mar da fertilidade


Yukio Mishima - O mar da fertilidade



Costumo manter os meus olhos bem abertos quando me aproximo de uma feirinha qualquer. É lá, nessas feiras sem identidade, geralmente, que achamos os produtos mais inusitados. Como os livros que adquiri sem querer numa minúscula barraca que expunha artigos velhos e estragados. De imediato foi o preço que me chamou a atenção. Baratíssimo para uma coleção de livros com aquela quantidade de páginas. Quase de graça. Depois foram as capas. Capas mofadas, rasgadas e velhas escritas em japonês. Comprei os livros por impulso, sem ao menos buscar informações sobre do que se tratava. Nem pude lê-los, pois estavam escritos em japonês. A única imagem vinha da capa, e parecia a representação simbólica de útero.

- Então por que lês Mishima?

A pergunta partiu da doutora Arlete Hamasaki, uma médica Nissei, que havia nascido no Brasil, mas já vivia em Lisboa há séculos. Ela costumava tomar café no mesmo local que eu. Vez ou outra conversávamos. Como pessoa era espetacular, como médica era famosa. Magrinha, na casa dos cinquenta anos, viúva, baixinha de metro e meio, Arlete havia chefiado o sofisticado Centro Cardiológico Pediátrico do Hospital da Cruz Vermelha de Lisboa. Apesar de lá tratar apenas casos limite, com histórias tristes, não houve uma vez em que em que eu a encontrei sem um sorriso espetado nos lábios ou de cara amarrada. Desde o primeiro dia em que conversamos sabia que estava na frente de uma mulher especial. Fisicamente era muito fraca, magérrima, pele e osso, esquálida, mas era capaz de derrotar um exército inteiro de homens trogloditas, fortes como touros, porque ela tinha dentro dela uma força incrível: seu astral, sua educação, sua inteligência.

- Então, Fimper, não respondes? Gostas de Yukio Mishima? – ela perguntou novamente.

- Comprei por acaso esses livros numa feirinha aqui do Linhó. Você conhece esse autor? Está em japonês, não entendo.

A doutora Hamasaki Contou-me que Yukio Mishima, o autor, havia sido educado numa escola de samurais. Leu a contra-capa: ele era um autor que em determinada parte da sua vida passou a escrever sobre o domínio das artes marciais como instrumento de ação baseado na ética dos samurais, sobre o equilíbrio entre o corpo e a mente e sobre a procura da verdade por meio da intuição. Descobri que os livros que eu tinha em mãos faziam parte de uma única obra, a sua última obra, Mar da Fertilidade, o testamento literário de Mishima, que entregou o original ao seu editor uma hora antes de se suicidar.

- Fizeste bem em comprá-los! – depois enrugou a testa como se tivesse dito uma coisa descabida - Quero dizer, a reformular minha colocação... fizeste mal. Ele é um escritor japonês muito importante, mas eu não gosto muito desse estilo clássico que ele tem, defensor da tradição. Além do mais, Mishima era um louco.

- Já leu esse livro? – perguntei intrigado.

- Esse vou confessar que nunca li. Só li o Confissões de uma Máscara. É bom, mas nada que encha os olhos. Além do que, existe esse lado guerreiro nele, louco, extravagante, que eu não gosto. Eu prefiro mais o estilo vanguardista de Tanizaki, e principalmente do seu modo delicado de falar sobre as mulheres nipônicas.

- Tanizaki? Nunca li nenhum livro dele.

- Então vou lhe emprestar alguns. Posso lhe emprestar outros também, de outros autores. A literatura nipônica é muito rica. Para mim, por mais louco que possa parecer, adoro os romances de diários que foram escritos pelas mulheres nipônicas das épocas bem antigas, acho que do século XII, talvez.

- Você já leu alguma coisa sobre isso? – surpreendi-me.

- Já. Isso me fascina. Os pormenores íntimos da vida dos cortesãos escritos pelas mulheres daquele tempo originaram coisas fabulosas. Talvez tenha sido o mundo e a época em que as mulheres tenham sido mais felizes, lógico, no ponto de vista delas.

- Sim?

- Era um mundo sentimental em que homens e mulheres se apaixonavam e desapaixonavam por toda espécie de razões que hoje nos pareceriam banais, como, por exemplo, o fato de uma jovem viver num lugar romanticamente deserto ou de escrever um bom poema...

Literatura era um assunto que a fascinava. Quase sempre conversávamos sobre literatura, ao ponto de, na última vez, ela, sem sentir, perder uma reunião que havia agendado, por pura distração. Tinha uma cultura literária muito vasta e rica, tendo lido, inclusive, para a minha admiração, Paulicéia Desvairada do Mário de Andrade e Viva o Povo Brasileiro do João Ubaldo Ribeiro como forma de enriquecer um diálogo com um músico brasileiro que veio a Portugal trazer a sua filha especialmente para ser operado por ela. Por várias vezes havia demonstrado interesse em ler o que eu escrevia, mas eu sempre declinava essas insinuações por pura insegurança, com medo que ela não gostasse. Contudo, nesse dia de Mishima, de algum modo, eu estava mais seguro. Finalmente cedi aos apelos, abri a pasta onde guardava os livros e as emendas e lhe entreguei.

- Prometo que lhe devolvo em breve. – ela sorriu ao falar - Vou lê-los com carinho.

Eu nunca havia encontrado alguém com quem pudesse realmente falar de tudo, como se estivesse falando comigo mesmo. Com Arlete, finalmente isso aconteceu. Apesar da sua idade ser quase o dobro da minha, entre nós não havia segredos ou recatos. Éramos amigos e pronto. Nos escritos que lhe entreguei estava também parte do meu diário, uma parte de mim e dos meus segredos que costumava colocar no papel. Entreguei sem vergonha.

- Posso lhe fazer um convite? – ela perguntou.

- Qual?

- Meu irmão e meu sobrinho vêm buscar-me para almoçar. Não queres almoçar conosco?

- Não vou incomodar, doutora Hamasaki?

- Não me chames de doutora, por favor. Arlete e só. Assim está bom. – voltou a sorrir – e de forma alguma vais incomodar. Eu estou a convidar. Vai ser divertido.

O irmão eu já conhecia de vista. Era um advogado bigodudo um pouco mais velho que ela. O filho do advogado, sansei, era da minha idade, advogado também, animado. Antes de nos sentarmos, antes mesmo de nos cumprimentarmos, os dois já haviam articulado mais de mil palavras em elogio à decoração do restaurante e da vista agradável. O filho não falava muito, mas o pai falava pelos cotovelos. Tinha uma necessidade extrema de auto-afirmação perante a Arlete e por isso não conseguia ficar segundos sem manifestar qualquer tipo de opinião. Destilava opiniões confusas em todas as direções. Chegava, com isso, a ser arrogante. Era até engraçado ver sua arrogância em ação. Até a Arlete achava graça. Espantava-me como aquela senhora de tão farta sabedoria era muito mais modesta que aquele advogado, que achava que sabia de tudo e que ninguém sabia de nada. O filho, por sua vez, ficava constrangido por não ter nada para falar e se limitava a balançar o copo de saquê para o lado esquerdo e para o direito, diversas vezes, sem parar, e quando não tinha ninguém olhando, entornava três goles seguidos pela goela adentro, deixando a bochecha rosada e os olhos esbugalhados. Ficaria bêbado no final do almoço.

- Não há nada mais enojante do que uma pessoa que se diz artista e que tem um temperamento artístico. – disse o irmão, quase sem querer, ao falar de um pintor que almoçava com um marchant na mesa ao lado, conhecidos da Arlete.

- Não ligue para ele, papai, na verdade ele sempre foi assim. Nunca nos cumprimentou. Tenho certeza que fala com a tia Arlete apenas porque ela salvou a vida dele. Se não fosse por isso, nem se dignificaria a saudá-la.

- Enoja-me, filho, ver tal figura.

- Calma, pai.

- Calma nada. Depois de tudo o que fizemos por ele, nem ao menos um "olá" merecemos. Tem o rei na barriga. Acha-se um fenômeno apenas porque o Brito o apadrinhou. Com um padrinho desses qualquer um vende quadros, até ele, esse idiota.

- Não fales dessa forma, ele pode escutar. – Arlete interveio, achando graça.

- Estou a falar como sempre falei. Eu não mudo o meu jeito de ser. E estou a falar a verdade. Pinturas para a classe média! Uff! Tenha a santa paciência! Ele que pintava tão bem, agora só pinta ruelas de favelas.

- Não confunda a finalidade moral de um artista com o efeito moral que a sua obra alcança. – disse a Arlete – se ele resolveu seguir essa trajetória, deixe-o prosseguir. Ele apenas seguiu a intuição dele.

- Tu é que não me venhas falar de intuição. Para mim isso é para aqueles que não pensam.- Bebeu um gole de água e completou: - Intuição para mim é para gostos médios. E gosto médio para mim é mau gosto.

- Eu adoro os quadros que ele agora pinta. Ele consegue retratar a realidade das favelas de uma forma que eu nunca vi em nenhum outro artista.

- Está aí outra coisa que não concordo. Porque a obra de arte só é superior quando consegue retratar a realidade? E a irrealidade? A irrealidade não existe? Seremos tão cépticos em desprezar o que se esconde nas profundezas do nosso inconsciente? – bebericou um gole de água - Arlete, minha querida, nosso inconsciente é nossa irrealidade realizável, nunca ouviste isso?

- Continuo a achar a realidade muito mais importante. Já te esqueceste que o epíteto de José Malhoa foi sempre "o historiador da vida rústica de Portugal"?

- Não me venhas com essa, auto lá. José Malhoa não pintou só a realidade. Já vi quadros dele em que retratava a morte inesperada de um suíno, e até uma pintura onde representava as várias fases da embriaguez.

- Não são estes os seus quadros mais reverenciados.

- Pois não. Mas isto não fortalece teus argumentos. Volto a repetir: toda a arte é uma mentira, uma falsificação. Tão bela que chega a ser mais bonita que a própria realidade.

- Sei, sei.

- Eu só consigo admirar um fotógrafo quando ele tira fotos da alma e não de traços superficiais. Só consigo admirar um pintor quando ele pinta o perímetro de um caráter de uma pessoa ou a cor do seu temperamento e não apenas características de uma fisionomia.

O filho, que balançava o copo de saquê para lá e para cá, olhou-me e perguntou:

- E tu, Fimper, que achas?

- Acho que os interesses têm a ver com a nossa visão pessoal, cultural. Idiossincrasia, mais ou menos. O que para mim pode ser o mais interessante, para si pode não ser. 

- E o que é mais interessante para ti? – o irmão perguntou.

- Eu acho que um bom livro é aquele que todos entendem. – respondi.

- Todos? – o pai quase engasgou - Que todos? O mundo inteiro? Toda a humanidade? Uma raça? Velhos, jovens, crianças? Ricos e famintos? Islamitas, israelitas, sauditas, americanos? Em qual época? Em qual ponto de vista?

- O ponto de vista universal.

- Não, meu amigo, quando generalizamos muito corremos o risco de deixarmos o livro muito aberto, muito superficial, sem profundidade, exatamente como os poderosos querem.

- Mas alguém tem que nos ler, nos ver, senão a arte não faz sentido algum. – eu disse, um pouco assustado com a reação dele – E, por causa disso, temos que saber para qual público, target, estamos nos dirigindo. Isso é básico.

- Público? – o homem irritou-se ainda mais - Que público? Target? Que é isso? Público alvo? Alguém me ensine a respeito! Segmentação, nichos, sub-nichos, deixem-me em paz! O verdadeiro artista limpa o rabo com a opinião do povão! A reciclagem, a "obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica", a mistura, o mundo moderno, isso é lixo! – enfiou duas azeitonas na boca e continuou falando - E tu achas que alguém hoje em dia compra um livro por causa da qualidade de um escritor? 

Quando eu já estava para dizer de como comprei Mishima na feirinha do Linhó, ele retrucou logo:

- Compra, isso sim, porque foi seduzido por estratégias de marketing de uma editora. Um editor é capaz de transformar qualquer pessoa com um mínimo de inteligência num escritor best seller, basta querer. Tenho certeza que é isto que irá acontecer com esse pintor metido à besta que nem é capaz de cumprimentar-nos. E tudo isso por causa do Brito. É o marchant que dita as leis do mercado, meu caro. É ele que aconselha o colecionador. Ou tu achas que um colecionador que compra um quadro hoje em dia quer lá saber da opinião do povão? Tu achas que alguém compra arte unicamente porque gosta? Não, amigo. A arte para um colecionador é uma forma de aplicar o seu dinheiro. Nada mais que isso. É tudo um grande negócio.

Arlete pediu, com um calmo balançar de mãos, para que eu deixasse de respondê-lo. Ela bebeu água e indicou com gestos de que estava ouvindo o irmão, que ele podia continuar. Vez ou outra, com gestos também, indicava que guardaria na memória algumas considerações e, que quando assim o fizesse, nunca mais se esqueceria delas. O irmão falou, falou sem parar, enquanto comíamos os noodles, aturdidos com tantas considerações...

- Com licença – Arlete levantou-se, de repente, bem séria – Vou à casa de banho. Espero que estejas melhor quando eu voltar.

E a médica baixinha, fraca, magérrima, conduziu seu perfeito conjunto de pele e ossos para o banheiro, sobre a minha admiração, que via na sua exaltação e otimismo superior a razão do seu astral, sua educação e sua inteligência.

- Adoro-a. – disse o irmão finalmente mais calmo. Acho-a fantástica. – bebeu um gole de água - Tu não achas?

- Acho. Acho sim.

- Ela sonhou a vida inteira e fez. Não importou ser mulher, baixinha, fraquinha, imigrante japonesa pobre. Ela conseguiu.

- Eu sei que ela é uma médica muito respeitada.

- Uma das mais influentes no país, meu amigo. Estudou no National Heart Hospital, em Londres, com Anna Commderbille, a maior especialista mundial na área. Além de dedicar-se à cardiologia neonatal e infantil no Hospital da Cruz Vermelha em Lisboa, ela passa pelo menos um mês no Children's Hospital em Boston, trabalhando doze horas por dia. É uma das pessoas mais inteligentes que eu já conheci. Eu só sou refilão assim quando estou com ela. Gosto de discutir apenas com pessoas inteligentes.

- Éeeeeeee! – grunhiu o filho totalmente bêbado por causa do saquê que havia bebido sem parar desde o momento em que nos sentamos à mesa – minha tia é um espetáculo! – e virando-se para a cozinha e para o primeiro funcionário do restaurante que viu – Se faz favor, mais saquê!



quarta-feira, 23 de abril de 2014

Péter Nádas - Parallel Stories

Péter Nádas - Parallel Stories



O único livro que li de Imre Kertész foi Fatelesness (Sem destino), mas posso afirmar que só o premiaram com o Nobel, porque não poderiam prever que seria editado três anos depois as Histórias Paralelas de Péter Nadas. 

Não há homem vivo que mereça tanto esta distinção, apesar do Nobel em si, ser insignificante e de nada valer para um gigante como Nádas. 

Para escrever esta história política, sexual e emocional de duas famílias - os Döhrings alemães e os Lehrs Lippay, húngaros - Nádas acrescentou 18 anos de desgaste mental e físico à sua existência e retirou cinco anos de prazer da minha vida - exatamente os anos que demorei para lê-lo. 

Pelas mais de mil páginas que compõe os três volumes, é penoso o trabalho de criar uma conexão pelas centenas de histórias que existem, estórias que parecem separadas, mas que estão interligadas por um fio condutor que é a Hungria do século XX. 

Só para juntar todas as histórias paralelas e ordená-las dentro de um contexto que pudesse fazer sentido para mim, demorei três anos!

Sem criticar o tradutor Imre Goldstein, que falha pouco ao traduzir a língua mais difícil do mundo, a culpa do meu estorvo  é toda da arte perversa de Nádas. Ao dotar o livro de pormenores exaustivos típicos do puro realismo do século XIX e de acrescentar e enfeitar constantemente o texto com elipses, perífrases, lilotes, etc, tornou-se uma tarefa hercúlea tecer a cronologia, separar os fios que se cruzam, conectar os pontos comuns de István Lippay-Lehr, Erna Demén, Gyöngyvér Mózes, Carl Maria Döhring, Samu Demén e de todos os outros personagens que que se cruzam pelas ruas de Budapeste e Berlim durante praticamente todo o século XX. 

Para quem quer ficar automaticamente de cabelos brancos, recomendo vivamente este livro.



segunda-feira, 21 de abril de 2014

Santa Rita Durão - O Caramuru

Santa Rita Durão - O Caramuru



A sinopse pode ser escrita assim: após sobreviver a um naufrágio no litoral baiano, o português Diogo Álvares Correia (Caramuru) passa a viver entre os índios Tupinambás.

Ao querer prestar tributo a sua terra natal, donde foi levado quando tinha dez anos, o frei português Santa Rita Durão, sem imaginação e talento, não inovou em nada ao compor este poema épico em mil setecentos e tal. Imitou Camões, fez copy paste das histórias brasileiras de Simão de Vasconcelos, Brito Freire, Rocha Pita, Frei Jaboatão, Pero Lopez de Souza, Gabriel Soares e o Padre Baltasar Telles, alimentou com figuras de retórica e poética, moldou com as partes clássicas de composição de uma epopéia, temperou com informação erudita sobra a fauna e flora brasileira e voilá: sai o poema épico mais sensaborão do arcadismo português.

No entanto, num trecho, numa curta passagem lá pelo canto 36, o frei deve ter sido possuído pelo demônio. Criou uma passagem tão soberba, tão vasta em alcance e emoção que se destoa de todo o resto. Foram 64 versos diabólicos, compostos em transe romântico!

Facilmente eliminaria o que está a mais no poema, ou seja, tudo, os dez cantos, todos aqueles versos decassílabos, com as oitavas rimas camonianas sem sal, e deixaria única exclusivamente esta passagem onde, ao perceber que o seu amado Diogo partira num barco com a sua rival Paraguaçú, com destino à França para lá casarem, a apaixonada Moema atira-se ao mar e nada em direção à nau de Diogo, morrendo, em seguida, tragicamente, cansada e sem socorro, afogada. Sempre quando tento me inspirar para escrever algo incrivelmente romântico, vou a um jardim público semi-movimentado e leio em voz alta para quem quiser ouvir:



É fama então que a multidão formosa

Das Damas, que Diogo pertendiam,

Vendo avançar-se a nau na via undosa,

E que a esperança de o alcançar perdiam:

Entre as ondas com ânsia furiosa

Nadando o Esposo pelo mar seguiam,

E nem tanta água que flutua vaga

O ardor que o peito tem, banhando apaga.



Copiosa multidão da nau Francesa

Corre a ver o espetáculo assombrada;

E ignorando a ocasião da estranha empresa,

Pasma da turba feminil, que nada:

Uma, que às mais precede em gentileza,

Não vinha menos bela, do que irada:

Era Moema, que de inveja geme,

E já vizinha à nau se apega ao leme.



Bárbaro (a bela diz) Tigre, e não homem...

Porém o Tigre por cruel que brame,

Acha forças amor, que enfim o domem;

Só a ti não domou, por mais que eu te ame:

Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,

Como não consumis aquele infame?

Mas pagar tanto amor com tédio, e asco...

Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.



Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,

Quando eu a fé rendia ao teu engano;

Nem me ofenderas a escutar-me altivo,

Que é favor, dado a tempo, um desengano:

Porém deixando o coração cativo

Com fazer-te a meus rogos sempre humano,

Fugiste-me, traidor, e desta sorte

Paga meu fino amor tão crua morte?



Tão dura ingratidão menos sentira,

E esse fado cruel doce me fora,

Se a meu despeito triunfar não vira

Essa indigna, essa infame, essa traidora:

Por serva, por escrava te seguira,

Se não temera de chamar Senhora

A vil Paraguaçu, que sem que o creia,

Sobre ser-me inferior, é néscia, e feia.



Enfim, tens coração de ver-me aflita,

Flutuar moribunda entre estas ondas;

Nem o passado amor teu peito incita

A um ai somente, com que aos meus respondas:

Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,

(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;

Dispara sobre mim teu cruel raio...

E indo a dizer o mais, cai num desmaio.



Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,

Pálida a cor, o aspecto moribundo,

Com mão já sem vigor, soltando o leme,

Entre as falsas escumas desce ao fundo:

Mas na onda do mar, que irado freme,

Tornando a aparecer desde o profundo;

Ah Diogo cruel! disse com mágoa,

E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.



Choraram da Bahia as Ninfas belas,

Que nadando a Moema acompanhavam;

E vendo que sem dor navegam delas,

À branca praia com furor tornavam:

Nem pode o claro Herói sem pena vê-las,

Com tantas provas, que de amor lhe davam;

Nem mais lhe lembra o nome de Moema,

Sem que ou amante a chore, ou grato gema.


O ritmo mantém-se até o fim, até a morte de Moema, afogada. E, como se tivesse sido exorcizado, o frei desperta do transe, volta a mudar o ritmo, e retorna ao normal de toda a epopeia sem graça. Fantástico!





domingo, 20 de abril de 2014

Saki - The complete short stories

Saki - The complete short stories



Para entender Saki e seu gênio, é preciso primeiro entender seus predecessores.


Temos que regressar à Hamburgo, para 1600 mais ou menos, para a mente do poeta e teólogo Johann Rist, que escrevia com grande alcance e influência, para um periódico chamado Erbauliche Monaths Unterredungen, hinos curtos com métrica poética 8.7.8.7.

O caráter revolucionário dos hinos e o sucesso do periódico inspirou o inglês Edward Cave a criar a primeira revista do mundo, The Gentleman's Magazine, onde escrevia, entre outros, Samuel Johnson estórias curtas sobre a nobreza inglesa. Quando a tecnologia da impressão das revistas sofreu a alteração do cobre para o aço, os periódicos começaram a nascer como pragas e atingiram um público cada vez maior. O Almanaque das Musas, Forget-Me-Not, entre outros, lançaram as bases para os “livros de presente”, publicados em Inglaterra e destinados ao público feminino, com textos curtos de escritores que eram pagos por texto. Com o sucesso inglês dos “gift books”, a americana Ann Sophia Stephens e seu marido, que tinha uma gráfica em Portland, nos EUA, tiveram a ideia de criarem um almanaque mensal com estórias curtas publicadas pela própria Ann Sophia Stephens. Essas histórias, com o passar dos anos, se desenvolveram para as Dime Novels, o que podemos comparar com a nossa literatura de cordel. Era mais rentável vender, ao invés de um almanaque com 10 histórias por 10$, dez livros com uma história por 1,5$ cada. Eram textos curtos, sem muita qualidade, que os americanos chamavam de potboiler, pulp fiction, onde um escritor, ou hack writer, ganhava por história, muitas vezes paga no mesmo dia da entrega do material.


Saki gostava disso e era nisso que estava focado. Beber de todas essas fontes, mas melhorar o processo. Foi a primeira vez que um potboiler estava sendo escrito por um hack writer genial. 

Mestre do conto curto de humor negro, que expunha ridiculamente a natureza da sociedade inglesa governada pelo Rei Eduardo VII, foi nesse período compreendido entre os primeiros quinze anos do século XX, onde, sem descanso, escreveu milhares de pequenos contos para periódicos, jornais, revistas, e a toda e qualquer entidade que lhe quisesse pagar, que Saki inscreveu seu pseudônimo curto na minha mente concisa.