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domingo, 22 de junho de 2014

Honoré de Balzac - A Comédia Humana

Honoré de Balzac - A Comédia Humana




Todo escritor que estiver quase desistindo de escrever porque tem dores na coluna, ou dor nos omoplatas, ou dores nas articulações das mãos, ou dos dedos, ou vista cansada, ou enxaqueca prolongada, ou perda crônica de memória deve se inspirar na loucura de Honoré de Balzac. Todo escritor que estiver culpando a sua própria dificuldade financeira pela desmotivação em continuar a escrever, deve se inspirar nas estratégias criadas pelo francês para dar a volta nos agiotas e continuar a criar. Todo escritor que culpa o barulho do trânsito pela sua falta de inspiração, que culpa o barulho da bateria do vizinho pela sua descontração, que culpa, imagine, a própria reprodução do barulho na sua mente irrequieta e castradora da criatividade, deve mascar Moca de café arábico, como o Balzac fazia. Todo escritor de part time que está pensando em deixar de lado a continuação da sua obra porque não lhe resta tempo suficiente na rotina do dia a dia para tal, seja porque os filhos pequenos lhe consomem seu tempo de lazer, seja porque o trabalho desgastante que executa seca as conexões criativas dos seus neurônios, deve estudar como o mestre resolveu este pequeno problema, este mero “detalhe” que também afetava a sua vida. Enfim, todo escritor que estiver fraquejando na sua arte de criação deve dar uma olhada em Balzac e na sua Comédia Humana.


Certa vez conheci um cara, em Recife, que colecionava Legos. A história do cara era incrível: estéril, sem filhos, quando sua esposa morreu tragicamente por afogamento numa praia, ele resolveu começar a construir a cidade de Paris com as peças de Lego que havia colecionado durante mais de quinze anos. Era a homenagem que queria fazer à falecida esposa, que sempre sonhou algum dia visitar a cidade das Luzes. 

Somente o miolinho de Louvre, Marais e Bourse ocupou a sala e quando resolveu passar para os quartos, foi inevitável quebrar as paredes para tornar o enquadramento mais real. Depois de um ano, trabalhando incansavelmente, percebeu que o apartamento onde morava era pequeno para o projeto que tinha em mente: não só construir Paris, mas também toda a sua área envolvente, dos subúrbios de Hauts-de-Seine, passando por Val-de-Marne e Seine-saint-Denis. Depois, talvez, se sobrasse grana, expandir para a França inteira. Gastou todas as economias que havia juntado, pediu dois empréstimos a bancos diferentes, pediu ajuda dos pais, amigos e familiares distantes e comprou o apartamento dos vizinhos: os dois que ficavam colados ao seu e um que ficava abaixo. Durante dois anos fez obras de remodelação e ampliação dos espaços e, para comprar os Legos suficientes, ele, que era professor municipal de geografia, teve que arrumar mais três trabalhos diferentes, que lhe consumiam quatorze horas do seu dia. Quando chegava em casa, mergulhava a fundo na construção dinâmica das formas e só acabava por volta das três, quatro da manhã, isso porque às seis já tinha que estar de pé para voltar ao trabalho.


Quando eu o conheci, ele já estava nessa rotina há vinte anos. Fisicamente estava destruído: tinha acabado de fazer 45 anos, mas parecia ter oitenta: barba e cabelo grandes e totalmente brancos, rugas tão grandes que pareciam que tinham enfiado minhocas por baixo da sua pele, olheiras azuis e roxas que eram mais visíveis que os próprios olhos. No entanto, a sua mente era tão lúcida, o seu discurso tão articulado que ele não combinava em nada com a imagem que oferecia. Falava sobre o seu projeto como se fosse ele o arquiteto que reconstruiu Hiroshima depois da hecatombe nuclear. Os seus quatro apartamentos interligados viraram um loft de 400 metros quadrados, sem paredes, muros, móveis de qualquer espécie, nenhuma divisão, somente uma privada, um colchão e uma cozinha improvisada feita embaixo da escada que ele construiu para ligar com o apartamento de baixo. Ele passou horas a me explicar as ligações metropolitanas que fez no apartamento de baixo, a mostrar como o trenzinho elétrico funcionava, como metade de Paris ficava sem luz se ele cortasse o gerador de pilhas que ele mesmo construiu, como ele enterrou bonequinhos de playmobil na terra artificial do cemitério de Pére Lachaise, da dificuldade que foi em reconstruir as videiras das colinas de Bourgogne e ligar os bunkers alemães da Normandia. O triste daquilo tudo era que Paris e toda a França que ele havia construído não era um projeto visivelmente bonito. Não estava bem construído, é o que eu quero dizer. Havia falhas, havia ligações que não faziam sentido. Mas eu nunca disse isso a ele, com medo de feri-lo mortalmente. Sempre quando me pego a pensar em Balzac ou a ler mais um livro da coleção da comédia humana, penso nesse meu amigo e de como ele deve estar nesse momento ou se já concluiu a sua obra.


A Comédia Humana é a maior obra literária da história da literatura universal. Parecido com meu amigo que primeiro queria construir Paris, mas depois já queria erigir a França inteira, Balzac, em determinado momento da sua invenção, resolveu subir o nível de dificuldade e acrescentou um toque de originalidade, criando o cruzamento e retorno dos personagens em diferentes obras. Dito assim, parece simples, mas se imaginarmos que o francês não dispunha de computador e que era perfeccionista ao extremo ao ponto de criar uma biografia real dos milhares de personagens que criou com planos minuciosos de aparição e desaparecimento em determinado livro, capítulo ou estrutura narrativa, é fácil perceber a dimensão exagerada da dificuldade que engendrou a si próprio. Escrevendo para ganhar dinheiro, com câimbras, dores na coluna, nos omoplatas, nas articulações das mãos, nos dedos, sofrendo de hipertensão, quase cego, perseguido por agiotas, com fome, Balzac se submeteu a uma rotina de quatorze a dezoito horas por dia de trabalho, todos os dias, e, em trinta anos de escrita ininterrupta, e mais de 100.000 xícaras de café fortíssimo, concluiu dezessete volumes, doze mil páginas, noventa e seis obras, e criou mais de dois mil e quinhentos personagens que se cruzavam e retornavam ora numa obra ora noutra. Incompreendido pela sua originalidade, nunca foi bem aceito pela crítica. Com 51 anos, morreu de cansaço, pobre e cheio de dívidas.


Milhares de biógrafos dedicaram a vida a estudá-lo e falharam.


Talvez porque Balzac e a Comédia Humana não tenham sido criados para serem estudados, mas sim vividos.



sábado, 21 de junho de 2014

Carlos Heitor Cony - Quase memória

Carlos Heitor Cony - Quase memória




Minha filha de seis anos comemorou o encerramento do ano letivo com um arraial feito na escola, onde não faltou o tradicional porco no espeto, comida e bebida até não acabar mais, música brega e as barraquinhas de artesanato. É uma festa muito animada e todos os pais, parentes e amigos foram convidados a participarem da animação (desde que pagassem a entrada), que duraria até meia noite.



Esse ano houve desistências de última hora e algumas barraquinhas ficaram disponíveis para serem utilizadas na comercialização de qualquer produto, e eu me candidatei rapidamente, enviando o formulário de reserva na mesma hora: venda de livros! Vi nisso uma oportunidade de escoar alguns livros que já não me fazem falta ou que já não tenho apego material, pois estão sendo substituídos entusiasticamente por mim pelos ebooks, ou os livros da “cloud´ia”, como costumo dizer. Nesse momento tenho um tablet e vejo inúmeras vantagens em ler através deste dispositivo.



Minha esposa viu a oportunidade de ganharmos algum dinheiro com a comercialização, nem que fosse para compensar o pagamento das entradas para o arraial, que foram caras: 25 € a família. Começamos antes de ontem a retirar os livros das prateleiras e a etiquetar um por um com preços que ia de 1,00 € aos 3,00 €, e depois a separá-los em grandes sacos para facilitar o transporte.



Ontem, por volta das 19:00 hs, já com a barraquinha montada e os livros dispostos na mesa, apareceu o primeiro freguês: um senhor de mais ou menos sessenta anos, de bigode denso, baixo, óculos de massa tradicionais e uma cara extremamente simpática e contente. Tinha a neta a estudar na escola, mas a menina não era da turma da minha filha, apesar de ter terminado também o 1º ano. Falamos pouco, porque ele logo mergulhou os olhos nos livros e retirou de lá, no meio da pilha de 2,00 €, o livro Quase Memória de Carlos Heitor Cony. Separou para um canto e depois retirou mais dois, automaticamente: um livro de Júlio Verne e outro de Sidney Sheldon. O preço final foi seis, mas ele regateou para cinco porque eu estava com dificuldade em lhe dar troco. Enfiou os livros na bolsa da esposa, cumprimentou-me e saiu todo contente em direção aos comes e bebes para pedir uma carcaça de chouriço com farinheira.



Depois desse, muitos outros apareceram, alguns compraram outros não, a barraquinha estava tendo um movimento inesperado e um relativo sucesso e a minha esposa estava contente pois estávamos de uma forma ou de outra ganhando algum dinheiro e dando fim aos livros mofados que enchiam nossa casa de tralha. No entanto, eu, sentadinho na cadeira, estava imerso e alheio a tudo o que se passava ao meu redor e só olhava para o homem que me comprou o livro do Cony, o primeiro. Levantei, confiante, e fui até lá:



- Boa noite...



O sujeito, primeiro, levou um susto, depois mostrou indiferença. Os portugueses são mestres em mostrarem de propósito essa alteração do susto para a total indiferença.



- Acabou de me comprar um livro. – eu continuei, sério.



Ele abriu um sorriso e nada falou. Sua expressão dizia o seguinte: “ e daí?”



- Podemos anular a compra? Posso voltar a ficar com o livro?



- Com os três?



- Não. Só com Quase Memória.



- Por quê?



- Não o queria vender. Só isso.



- Então porque o pôs à venda?



- Foi por engano.



- Não me pareceu. Mostrei a si que queria ficar com o livro, inclusive ainda conversamos sobre ele e sobre Cony.



Tirei a nota de cinco da carteira e disse:



- Olha, fazemos assim, eu lhe devolvo os cinco. Fica a ganhar porque o livro custava dois.



- Dez. Dou-lhe de volta por dez euros.



Declinei. Achei aquilo um absurdo e voltei muito chateado para a minha barraquinha. Poxa, o homem afinal era o avô de uma coleguinha de escola da minha filha. É a comunidade escolar, a comunidade do bairro, política de boa vizinha e fraternidade; estávamos em festa, eu fui humilde e expliquei a situação; fui cordial e ainda lhe propus uma vantagem financeira pela anulação do negócio, e ele ainda tentou explorar a situação pedindo um valor cinco vezes mais alto?



Bebi uma cerveja às goladas, comi um pote de arroz doce, visitei todas as outras barraquinhas vizinhas e resolvi voltar à conversa com o homem, que ainda permanecia colado à grelha, onde o imenso porco derretia sobre às brasas do carvão.



- Tudo bem. – disse eu, nervoso - Dou dez Euros. Passa o livro.



Novamente o sujeito demonstrou aquela indiferença irritante, mas disse a seguir com muita simpatia:



- Vou lhe explicar: gostei do livro. E está escrito em brasileiro. Sabe que Cony aqui em Portugal primeiro é raro de encontrar, segundo está sempre traduzido para o português de Portugal. Gosto de ler na língua nativa. Portanto, pelo fato de estar escrito em brasileiro só valoriza ainda mais o livro.



- Quanto? – perguntei, desolado.



- Olha, amigo – ele disse, tentando ser realmente simpático – porque não desiste? Deixa disso! Aposto que consegue encontrá-lo em ebook.



- Já o tenho em ebook.



- Pois sim! Viste?



- Esse livro é especial para mim, pois me foi dado como presente pelo meu avô.



Novamente aquele sacolejar de ombros e o enrugar de lábios que mostrava “e daí?”



- Meu pai esteve especialmente em Portugal para dar-me este livro. Foi um presente que o meu avô quis dar-me, pois sempre gostou de Cony.



- Não vejo nenhuma dedicatória.



- Meu avô não era de fazer dedicatórias.



- Como sei que está a falar a verdade?



- Página 171, capítulo 21.



- Que tem? – o homem perguntou folheando o livro até à página. Os óculos já estavam na ponta do nariz.



- Eu disse:“Desde que recebi o embrulho e vi a letra do pai, tão inconfundível, tão dele e tão recente, o tempo deixou de funcionar. Lá fora anoiteceu, a secretária foi embora, todos foram embora, não senti fome nem pressa, acho que o pai me mandou esse embrulho para isso mesmo, para que eu abrisse espaço e ficasse pensando nele – embora eu nunca tenha deixado de nele pensar, de forma fragmentada, a partir de pequenas coisas da minha vida e da vida dos outros”. É o primeiro parágrafo. Vai ver que tem uma anotação minha no canto direito, em caneta vermelha, dizendo o seguinte: “interessante o modo fragmentado utilizado, é a cara do vovô”. Vai ver que o livro está todo rabiscado. Com cores diferentes, pois utilizei canetas diferentes ao longo do tempo, pois li e reli o livro diversas vezes e a cada vez que eu o lia, descobria novas semelhanças com meu avô que ia anotando nos rebordos, nas abas, no cabeçalho, no rodapé.



O homem passou a folhear o livro de trás para frente e de frente para trás.O bigode subia e descia a medida que raspava os dentes nos lábios.



- Se você me vender o livro por dez euros, um dia qualquer darei esse livro à minha filha que dará ao filho dela com certeza. - finalizei, bem emotivo.



- Vendo por 40 Euros.



- Vinte.



- Trinta.



- Vinte e cinco. É tudo o que tenho e que consegui ganhar hoje com a venda dos outros livros.



- Fechado.




Não posso dizer que voltei satisfeito para a minha barraquinha, porque me senti burro e de certa forma enganado. Bebi um café – pago pela minha esposa – guardei todas as coisas, fechei a barraca e voltei para casa, ainda não eram onze da noite, mas pelo menos consegui ver na televisão o grande jogo de futebol que foi Honduras e Equador.