FIMP

sábado, 21 de junho de 2014

Carlos Heitor Cony - Quase memória

Carlos Heitor Cony - Quase memória




Minha filha de seis anos comemorou o encerramento do ano letivo com um arraial feito na escola, onde não faltou o tradicional porco no espeto, comida e bebida até não acabar mais, música brega e as barraquinhas de artesanato. É uma festa muito animada e todos os pais, parentes e amigos foram convidados a participarem da animação (desde que pagassem a entrada), que duraria até meia noite.



Esse ano houve desistências de última hora e algumas barraquinhas ficaram disponíveis para serem utilizadas na comercialização de qualquer produto, e eu me candidatei rapidamente, enviando o formulário de reserva na mesma hora: venda de livros! Vi nisso uma oportunidade de escoar alguns livros que já não me fazem falta ou que já não tenho apego material, pois estão sendo substituídos entusiasticamente por mim pelos ebooks, ou os livros da “cloud´ia”, como costumo dizer. Nesse momento tenho um tablet e vejo inúmeras vantagens em ler através deste dispositivo.



Minha esposa viu a oportunidade de ganharmos algum dinheiro com a comercialização, nem que fosse para compensar o pagamento das entradas para o arraial, que foram caras: 25 € a família. Começamos antes de ontem a retirar os livros das prateleiras e a etiquetar um por um com preços que ia de 1,00 € aos 3,00 €, e depois a separá-los em grandes sacos para facilitar o transporte.



Ontem, por volta das 19:00 hs, já com a barraquinha montada e os livros dispostos na mesa, apareceu o primeiro freguês: um senhor de mais ou menos sessenta anos, de bigode denso, baixo, óculos de massa tradicionais e uma cara extremamente simpática e contente. Tinha a neta a estudar na escola, mas a menina não era da turma da minha filha, apesar de ter terminado também o 1º ano. Falamos pouco, porque ele logo mergulhou os olhos nos livros e retirou de lá, no meio da pilha de 2,00 €, o livro Quase Memória de Carlos Heitor Cony. Separou para um canto e depois retirou mais dois, automaticamente: um livro de Júlio Verne e outro de Sidney Sheldon. O preço final foi seis, mas ele regateou para cinco porque eu estava com dificuldade em lhe dar troco. Enfiou os livros na bolsa da esposa, cumprimentou-me e saiu todo contente em direção aos comes e bebes para pedir uma carcaça de chouriço com farinheira.



Depois desse, muitos outros apareceram, alguns compraram outros não, a barraquinha estava tendo um movimento inesperado e um relativo sucesso e a minha esposa estava contente pois estávamos de uma forma ou de outra ganhando algum dinheiro e dando fim aos livros mofados que enchiam nossa casa de tralha. No entanto, eu, sentadinho na cadeira, estava imerso e alheio a tudo o que se passava ao meu redor e só olhava para o homem que me comprou o livro do Cony, o primeiro. Levantei, confiante, e fui até lá:



- Boa noite...



O sujeito, primeiro, levou um susto, depois mostrou indiferença. Os portugueses são mestres em mostrarem de propósito essa alteração do susto para a total indiferença.



- Acabou de me comprar um livro. – eu continuei, sério.



Ele abriu um sorriso e nada falou. Sua expressão dizia o seguinte: “ e daí?”



- Podemos anular a compra? Posso voltar a ficar com o livro?



- Com os três?



- Não. Só com Quase Memória.



- Por quê?



- Não o queria vender. Só isso.



- Então porque o pôs à venda?



- Foi por engano.



- Não me pareceu. Mostrei a si que queria ficar com o livro, inclusive ainda conversamos sobre ele e sobre Cony.



Tirei a nota de cinco da carteira e disse:



- Olha, fazemos assim, eu lhe devolvo os cinco. Fica a ganhar porque o livro custava dois.



- Dez. Dou-lhe de volta por dez euros.



Declinei. Achei aquilo um absurdo e voltei muito chateado para a minha barraquinha. Poxa, o homem afinal era o avô de uma coleguinha de escola da minha filha. É a comunidade escolar, a comunidade do bairro, política de boa vizinha e fraternidade; estávamos em festa, eu fui humilde e expliquei a situação; fui cordial e ainda lhe propus uma vantagem financeira pela anulação do negócio, e ele ainda tentou explorar a situação pedindo um valor cinco vezes mais alto?



Bebi uma cerveja às goladas, comi um pote de arroz doce, visitei todas as outras barraquinhas vizinhas e resolvi voltar à conversa com o homem, que ainda permanecia colado à grelha, onde o imenso porco derretia sobre às brasas do carvão.



- Tudo bem. – disse eu, nervoso - Dou dez Euros. Passa o livro.



Novamente o sujeito demonstrou aquela indiferença irritante, mas disse a seguir com muita simpatia:



- Vou lhe explicar: gostei do livro. E está escrito em brasileiro. Sabe que Cony aqui em Portugal primeiro é raro de encontrar, segundo está sempre traduzido para o português de Portugal. Gosto de ler na língua nativa. Portanto, pelo fato de estar escrito em brasileiro só valoriza ainda mais o livro.



- Quanto? – perguntei, desolado.



- Olha, amigo – ele disse, tentando ser realmente simpático – porque não desiste? Deixa disso! Aposto que consegue encontrá-lo em ebook.



- Já o tenho em ebook.



- Pois sim! Viste?



- Esse livro é especial para mim, pois me foi dado como presente pelo meu avô.



Novamente aquele sacolejar de ombros e o enrugar de lábios que mostrava “e daí?”



- Meu pai esteve especialmente em Portugal para dar-me este livro. Foi um presente que o meu avô quis dar-me, pois sempre gostou de Cony.



- Não vejo nenhuma dedicatória.



- Meu avô não era de fazer dedicatórias.



- Como sei que está a falar a verdade?



- Página 171, capítulo 21.



- Que tem? – o homem perguntou folheando o livro até à página. Os óculos já estavam na ponta do nariz.



- Eu disse:“Desde que recebi o embrulho e vi a letra do pai, tão inconfundível, tão dele e tão recente, o tempo deixou de funcionar. Lá fora anoiteceu, a secretária foi embora, todos foram embora, não senti fome nem pressa, acho que o pai me mandou esse embrulho para isso mesmo, para que eu abrisse espaço e ficasse pensando nele – embora eu nunca tenha deixado de nele pensar, de forma fragmentada, a partir de pequenas coisas da minha vida e da vida dos outros”. É o primeiro parágrafo. Vai ver que tem uma anotação minha no canto direito, em caneta vermelha, dizendo o seguinte: “interessante o modo fragmentado utilizado, é a cara do vovô”. Vai ver que o livro está todo rabiscado. Com cores diferentes, pois utilizei canetas diferentes ao longo do tempo, pois li e reli o livro diversas vezes e a cada vez que eu o lia, descobria novas semelhanças com meu avô que ia anotando nos rebordos, nas abas, no cabeçalho, no rodapé.



O homem passou a folhear o livro de trás para frente e de frente para trás.O bigode subia e descia a medida que raspava os dentes nos lábios.



- Se você me vender o livro por dez euros, um dia qualquer darei esse livro à minha filha que dará ao filho dela com certeza. - finalizei, bem emotivo.



- Vendo por 40 Euros.



- Vinte.



- Trinta.



- Vinte e cinco. É tudo o que tenho e que consegui ganhar hoje com a venda dos outros livros.



- Fechado.




Não posso dizer que voltei satisfeito para a minha barraquinha, porque me senti burro e de certa forma enganado. Bebi um café – pago pela minha esposa – guardei todas as coisas, fechei a barraca e voltei para casa, ainda não eram onze da noite, mas pelo menos consegui ver na televisão o grande jogo de futebol que foi Honduras e Equador.




Sem comentários:

Enviar um comentário