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Santa Rita Durão - O Caramuru |
A sinopse pode ser escrita assim: após sobreviver a um naufrágio no litoral baiano, o português Diogo Álvares Correia (Caramuru) passa a viver entre os índios Tupinambás.
Ao querer prestar tributo a sua terra natal, donde foi levado quando tinha dez anos, o frei português Santa Rita Durão, sem imaginação e talento, não inovou em nada ao compor este poema épico em mil setecentos e tal. Imitou Camões, fez copy paste das histórias brasileiras de Simão de Vasconcelos, Brito Freire, Rocha Pita, Frei Jaboatão, Pero Lopez de Souza, Gabriel Soares e o Padre Baltasar Telles, alimentou com figuras de retórica e poética, moldou com as partes clássicas de composição de uma epopéia, temperou com informação erudita sobra a fauna e flora brasileira e voilá: sai o poema épico mais sensaborão do arcadismo português.
No entanto, num trecho, numa curta passagem lá pelo canto 36, o frei deve ter sido possuído pelo demônio. Criou uma passagem tão soberba, tão vasta em alcance e emoção que se destoa de todo o resto. Foram 64 versos diabólicos, compostos em transe romântico!
Facilmente eliminaria o que está a mais no poema, ou seja, tudo, os dez cantos, todos aqueles versos decassílabos, com as oitavas rimas camonianas sem sal, e deixaria única exclusivamente esta passagem onde, ao perceber que o seu amado Diogo partira num barco com a sua rival Paraguaçú, com destino à França para lá casarem, a apaixonada Moema atira-se ao mar e nada em direção à nau de Diogo, morrendo, em seguida, tragicamente, cansada e sem socorro, afogada. Sempre quando tento me inspirar para escrever algo incrivelmente romântico, vou a um jardim público semi-movimentado e leio em voz alta para quem quiser ouvir:
É fama então que a multidão formosa
Das Damas, que Diogo pertendiam,
Vendo avançar-se a nau na via undosa,
E que a esperança de o alcançar perdiam:
Entre as ondas com ânsia furiosa
Nadando o Esposo pelo mar seguiam,
E nem tanta água que flutua vaga
O ardor que o peito tem, banhando apaga.
Copiosa multidão da nau Francesa
Corre a ver o espetáculo assombrada;
E ignorando a ocasião da estranha empresa,
Pasma da turba feminil, que nada:
Uma, que às mais precede em gentileza,
Não vinha menos bela, do que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme.
Bárbaro (a bela diz) Tigre, e não homem...
Porém o Tigre por cruel que brame,
Acha forças amor, que enfim o domem;
Só a ti não domou, por mais que eu te ame:
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis aquele infame?
Mas pagar tanto amor com tédio, e asco...
Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.
Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,
Quando eu a fé rendia ao teu engano;
Nem me ofenderas a escutar-me altivo,
Que é favor, dado a tempo, um desengano:
Porém deixando o coração cativo
Com fazer-te a meus rogos sempre humano,
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor tão crua morte?
Tão dura ingratidão menos sentira,
E esse fado cruel doce me fora,
Se a meu despeito triunfar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora:
Por serva, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar Senhora
A vil Paraguaçu, que sem que o creia,
Sobre ser-me inferior, é néscia, e feia.
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente, com que aos meus respondas:
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;
Dispara sobre mim teu cruel raio...
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.
Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as falsas escumas desce ao fundo:
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo;
Ah Diogo cruel! disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.
Choraram da Bahia as Ninfas belas,
Que nadando a Moema acompanhavam;
E vendo que sem dor navegam delas,
À branca praia com furor tornavam:
Nem pode o claro Herói sem pena vê-las,
Com tantas provas, que de amor lhe davam;
Nem mais lhe lembra o nome de Moema,
Sem que ou amante a chore, ou grato gema.
O ritmo mantém-se até o fim, até a morte de Moema, afogada. E, como se tivesse sido exorcizado, o frei desperta do transe, volta a mudar o ritmo, e retorna ao normal de toda a epopeia sem graça. Fantástico!
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