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Gabriel Garcia Marquez - Cem anos de Solidão |
No dia do seu falecimento, em homenagem
a Gabo, não poderia deixar de postar Cem anos de Solidão, seu livro mais
importante, e com o qual ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1982.Centrado
na mítica aldeia de Macondo, Gabriel Garcia Marquez narra a incrível história
da família Buendia do início até o seu desaparecimento.
Se me perguntarem se Gabo é o melhor, eu
apontaria Borges ou Carpentier. Se perguntarem se é essa a obra que mais
admiro do realismo mágico eu diria com certeza que não: Os filhos da meia noite
de Salman Rushdie, os contos curtos de Mo Yan e Lygia Fagundes Telles com
seminário dos ratos são lunaticamente melhores.
Cem anos de Solidão marcou-me pelo
acontecimento gerado pelo despertar de consciência que o livro existia. Tinha
eu dezoito anos e namorava uma menina um pouco mais velha. O avô dela, um
ex-político, havia se trancado no sótão do casarão onde moravam. O avô, diziam,
ficara louco. Trancado no sótão há dois dias, todos na casa temiam o pior.
Arrebentei com a porta dando um poderoso chute e todos da família correram para
dentro. Pude constatar escrito nas paredes do sótão em pilot grosso preto, as palavras que compõe as últimas páginas do livro. Eram garranchos
grotescos e assustadores, mas legíveis:
“...Em
nenhum ato da sua vida Aureliano tinha sido mais lúcido do que quando esqueceu
os seus mortos e a dor dos seus mortos e tornou a pregar as portas e as janelas
com as cruzes de Fernanda, para não se deixar perturbar por nenhuma tentação do
mundo, porque agora sabia que nos pergaminhos de Melquíades estava escrito o seu
destino. Encontrou-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos
fumegantes e os insetos luminosos que tinham desterrado do quarto qualquer
vestígio da passagem dos homens pela terra, e não teve serenidade para levá-los
para a luz, mas ali mesmo, de pé, sem a menor dificuldade, como se estivessem
escritos em castelhano sob o brilho deslumbrante do meio-dia, começou a
decifrá-los em voz alta. Era a história da família, escrita por Melquíades
inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Redigira-a
em sânscrito, que era a sua língua materna, e cifrara os versos pares com o
código privado do imperador Augusto e os ímpares com os códigos militares
lacedemônios. A proteção final, que Aureliano começava a vislumbrar quando se deixou
confundir pelo amor de Amaranta Úrsula, radicava em Melquíades ter ordenado os
fatos não no tempo convencional dos homens, mas concentrando tudo em um século
de episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante.
Fascinado pela descoberta, Aureliano leu em voz alta, sem saltos, as encíclicas
cantadas que o próprio Melquíades fizera Arcadio escutar e que, na realidade,
eram as predições da sua execução, e encontrou anunciado o nascimento da mulher
mais bela do mundo que estava subindo ao céu de corpo e alma, e conheceu a
origem de dois gêmeos póstumos que renunciavam a decifrar os pergaminhos, não
só por incapacidade e inconstância, mas porque as suas tentativas eram
prematuras. Neste ponto, impaciente por conhe cer a sua própria origem,
Aureliano deu um salto. Então começou o vento, fraco, incipiente, cheio de
vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos
anteriores às nostalgias mais persistentes. Não o percebeu porque naquele
momento estava descobrindo os primeiros indícios do seu ser, num avô
concupiscente que se deixava arrastar pela frivolidade através de um ermo
alucinado, em busca de uma mulher formosa a quem não faria feliz. Aureliano o
reconheceu, perseguiu os caminhos ocultos da sua descendência e encontrou o
instante da sua própria concepção entre os escorpiões e as borboletas amarelas
de um banheiro crepuscular, onde um operário saciava a sua luxúria com uma
mulher que se entregava a ele por rebeldia. Estava tão absorto que também não
sentiu a segunda arremetida do vento, cuja potência ciclônica arrancou das
dobradiças as portas e as janelas, esfarelou o teto da galeria oriental e
desprendeu os cimentos. Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua
irmã, mas sua tia, e que Francis Drake tinha assaltado Riohacha só para que
eles pudessem se perseguir pelos labirintos mais intrincados do sangue, até
engendrar o animal mitológico que haveria de pôr fim à estirpe. Macondo já era
um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do
furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com
fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo,
decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de
decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo
num espelho falado. Então deu Outro salto para se antecipar às predições e
averiguar a data e as circunstâncias da sua morte. Entretanto, antes de chegar
ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois
estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo
vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia
acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era
irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a
cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra “
“...tinham uma segunda oportunidade
sobre a terra”, inclusive, foi escrito sobre o vidro da janela, pois não havia
mais espaço na parede do sótão.
O avô da minha amiga não estava no sótão. Havia
desaparecido e nunca mais foi encontrado.
Só anos depois é que tive a coragem de
ler o livro, e até hoje preocupo-me seriamente com quem diz que vai lê-lo.
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