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sábado, 23 de agosto de 2014

Tchekhov - A corista e outras histórias

Tchekhov - A corista e outras histórias





O vigor de Tchekhov está na concisão. Nas suas palavras, as letras são riscadas se não tiverem força; nas suas frases, as módicas palavras que existem tem uma necessidade; nos seus poucos parágrafos há somente frases necessárias; e, nos seus curtos capítulos, há somente alguns parágrafos imprescindíveis. Para alguns imitadores isso tem a ver com metros… centímetros… milímetros. Para ele, resume-se a pontos, no caso pontos de perceção total. Tudo conta pra ele, até a pontuação, até o espaço entre parágrafos. Não quero dizer que Tchekhov é curto, econômico, superficial; pode ser, sim, na quantidade de letras que coloca no papel, mas nunca no alcance e profundidade, pois torna tudo o que escreve longo e difícil de compreender. Tchekhov abreviava tudo o que podia, até ele mesmo. Abreviado ao máximo, ele sumia da escrita. Esquecemos que ele existe. Só nos lembramos dele quando acabamos de ler um dos seus contos. Mas aí ele aparece para ficar e dura como Evatota. Ele consegue isso porque não tem estilo nenhum. Não tem carisma. Nunca veremos um Tchekhov assustado, ou cansado, ou triste, ou deprimido, ou alegre; nunca veremos um Tchekhov com vontade de manipular uma frase ou criar uma figura de linguagem. Isso são subterfúgios que ele dispensava. O homem não era vaidoso. Ele colocava-se atrás do que escrevia. O importante para ele estava no sentido e no sumo que o leitor iria extrair de cada parágrafo. E a força da sua escrita advém dessa característica peculiar. Por causa disso, Tchekhov não qualificava nada, ou melhor, não opinava sem razão: para ele a opinião verdadeira e bem construída era dez vezes mais poderosa que uma qualificação prematura. Afinal o leitor, e especialmente o leitor de Tchekhov, aprecia que se diga o que é de forma verdadeira, sem rodeios ou prévias considerações. Um leitor de Tchekhov irrita-se quando encontra em textos de outros autores adjetivos e advérbios em abundância. Um leitor como esse, treinado, já nas primeiras frases coloca de lado um livro que tenha adjetivos erradamente empregados. O que ele procura são os verbos e os substantivos. São nesses dois conectores que ele vai se segurar como polo positivo e negativo para carregar o seu gozo. De tanto procurar, porém, acaba sempre por voltar ao mestre russo, o único que pode satisfazer esse vício terrível. Em muitos textos que li, até mesmo clássicos que me influenciaram como Os Thibaults ou Child of Pleasure de Gabriele D'Annunzio, senti náuseas pela prosa enfadonha e excessivamente rica. Nunca senti isso com Tchekhov. Pelo contrário, a sua prosa é como Dramim. Um vez me disseram que só Dalton Trevisan seria capaz de reduzir o calhamaço do último capítulo de Ulysses de James Joyce a um conto de duas páginas no máximo e eu respondi que sim, só ele, porque não teria em competição Tchekhov. Ele nunca se aventuraria a tal façanha, porque um monólogo como aquele era descartável. O monólogo interior do mestre russo era diferente, era original. Vinha das pausas, das entrelinhas, do subtexto, das palavras que resumiam um parágrafo, da apropriação indevida do pensamento do leitor como enriquecimento do seu texto vazio. A corista e outras histórias (um mero exemplo, já que ele criou milhares de outros contos curtos antológicos) sofreu influência direta do sistema Stanislaviski, com seu conceito de subtexto e deixo aqui um exemplo:

 

1º de outubro de 1883

 
ELE BRIGOU COM A ESPOSA

Fato verídico

– Mas que inferno! Você chega em casa do trabalho, faminto como um cão, e só o diabo sabe como te alimentam! E você ainda não pode reclamar! Se reclama, na mesma hora: choro, lágrimas! Que eu seja excomungado três vezes por ter me casado!

Dito isso, o marido jogou com força a colher no prato, levantou-se de um salto e saiu furioso, batendo a porta. A esposa começou a soluçar, cobriu o rosto com o guardanapo e saiu também. Acabou-se o almoço.

O marido foi para o seu gabinete, atirou-se no divã e enfiou o rosto numa almofada.

“Foi o demônio que te empurrou para casar!”, pensou ele. “Que maravilha, a vida de casado! Deus me livre! Mal uma pessoa se casa, já quer suicidar-se!”

Um quarto de hora depois ele ouviu uns passos leves atrás da porta...

“É, é sempre assim... Me ofende, me insulta, e agora fica andando na frente da porta, querendo fazer as pazes... Ora bolas! É mais fácil eu me enforcar do que fazer as pazes!”

A porta se abriu com um leve rangido e não se fechou. Alguém entrou e, com passos leves e tímidos, dirigiu-se ao divã.

“Deixe estar! Pode pedir perdão, suplicar, soluçar... Figa para você! Nem pensar! Pode morrer, que não ouvirá uma palavra minha... Estou dormindo, como vê, e não quero conversa!”

O marido enfiou ainda mais o rosto na almofada e ficou roncando baixinho. Mas os homens são tão fracos quanto as mulheres. Eles amolecem e ficam mansos com facilidade. Ao sentir um corpo quente atrás de suas costas, o marido, por teimosia, moveu-se para mais perto do encosto do divã e encolheu a perna.

“É, agora estamos nos achegando, nos encostando, adulando... Daqui a pouco ela vai dar beijinhos no meu ombro, vai ficar de joelhos. Não suporto esses dengos! Apesar disso, vou ter de perdoá-la. No estado dela, faz mal ficar nervosa. Vou torturá-la um pouquinho, como castigo, depois perdoo...”

Ele ouviu bem perto do ouvido um suspiro profundo. A seguir, um segundo e um terceiro... O marido sentiu no ombro o roçar de uma mãozinha.

“Bom, deixa pra lá! Vou perdoar pela última vez. Chega de torturá-la, coitadinha! Ainda mais que a culpa foi minha! Fiz um barulhão por uma besteira...”

– Está bem... já chega, minha pequena!

O marido esticou o braço para trás e abraçou um corpo quente.

– Eca!!

Ao seu lado estava deitada sua enorme cadela Dianka.

9 de junho de 1884




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