Honoré de Balzac - A Comédia Humana |
Todo
escritor que estiver quase desistindo de escrever porque tem dores na coluna, ou dor nos omoplatas, ou dores nas articulações das mãos, ou dos
dedos, ou vista cansada, ou enxaqueca prolongada, ou perda crônica de memória
deve se inspirar na loucura de Honoré de Balzac. Todo escritor que estiver culpando
a sua própria dificuldade financeira pela desmotivação em continuar a escrever,
deve se inspirar nas estratégias criadas pelo francês para dar a volta nos agiotas
e continuar a criar. Todo escritor que culpa o barulho do trânsito pela sua
falta de inspiração, que culpa o barulho da bateria do vizinho pela sua
descontração, que culpa, imagine, a própria reprodução do barulho na sua mente
irrequieta e castradora da criatividade, deve mascar Moca de café arábico, como
o Balzac fazia. Todo escritor de part time que está pensando em deixar de lado
a continuação da sua obra porque não lhe resta tempo suficiente na rotina do
dia a dia para tal, seja porque os filhos pequenos lhe consomem seu tempo de
lazer, seja porque o trabalho desgastante que executa seca as conexões criativas
dos seus neurônios, deve estudar como o mestre resolveu este pequeno problema,
este mero “detalhe” que também afetava a sua vida. Enfim, todo escritor que
estiver fraquejando na sua arte de criação deve dar uma olhada em Balzac e na
sua Comédia Humana.
Certa
vez conheci um cara, em Recife, que colecionava Legos. A história do cara era
incrível: estéril, sem filhos, quando sua esposa morreu tragicamente por
afogamento numa praia, ele resolveu começar a construir a cidade de Paris com
as peças de Lego que havia colecionado durante mais de quinze anos. Era a
homenagem que queria fazer à falecida esposa, que sempre sonhou algum dia
visitar a cidade das Luzes.
Somente o miolinho de Louvre, Marais e Bourse
ocupou a sala e quando resolveu passar para os quartos, foi inevitável quebrar
as paredes para tornar o enquadramento mais real. Depois de um ano, trabalhando
incansavelmente, percebeu que o apartamento onde morava era pequeno para o
projeto que tinha em mente: não só construir Paris, mas também toda a sua área
envolvente, dos subúrbios de Hauts-de-Seine, passando por Val-de-Marne e Seine-saint-Denis.
Depois, talvez, se sobrasse grana, expandir para a França inteira. Gastou todas
as economias que havia juntado, pediu dois empréstimos a bancos diferentes, pediu
ajuda dos pais, amigos e familiares distantes e comprou o apartamento dos
vizinhos: os dois que ficavam colados ao seu e um que ficava abaixo. Durante
dois anos fez obras de remodelação e ampliação dos espaços e, para comprar os
Legos suficientes, ele, que era professor municipal de geografia, teve que
arrumar mais três trabalhos diferentes, que lhe consumiam quatorze horas do seu
dia. Quando chegava em casa, mergulhava a fundo na construção dinâmica das
formas e só acabava por volta das três, quatro da manhã, isso porque às seis já
tinha que estar de pé para voltar ao trabalho.
Quando
eu o conheci, ele já estava nessa rotina há vinte anos. Fisicamente estava destruído: tinha acabado de fazer 45 anos, mas parecia ter oitenta: barba e
cabelo grandes e totalmente brancos, rugas tão grandes que pareciam que tinham
enfiado minhocas por baixo da sua pele, olheiras azuis e roxas que eram mais
visíveis que os próprios olhos. No entanto, a sua mente era tão lúcida, o seu
discurso tão articulado que ele não combinava em nada com a imagem que
oferecia. Falava sobre o seu projeto como se fosse ele o arquiteto que reconstruiu
Hiroshima depois da hecatombe nuclear. Os seus quatro apartamentos interligados
viraram um loft de 400 metros quadrados, sem paredes, muros, móveis de qualquer
espécie, nenhuma divisão, somente uma privada, um colchão e uma cozinha
improvisada feita embaixo da escada que ele construiu para ligar com o
apartamento de baixo. Ele passou horas a me explicar as ligações metropolitanas
que fez no apartamento de baixo, a mostrar como o trenzinho elétrico
funcionava, como metade de Paris ficava sem luz se ele cortasse o gerador de
pilhas que ele mesmo construiu, como ele enterrou bonequinhos de playmobil na terra artificial
do cemitério de Pére Lachaise, da dificuldade que foi em
reconstruir as videiras das colinas de Bourgogne e ligar os bunkers alemães da
Normandia. O triste daquilo tudo era que Paris e toda a França que ele havia
construído não era um projeto visivelmente bonito. Não estava bem construído, é
o que eu quero dizer. Havia falhas, havia ligações que não faziam sentido. Mas
eu nunca disse isso a ele, com medo de feri-lo mortalmente. Sempre quando me pego
a pensar em Balzac ou a ler mais um livro da coleção da comédia humana, penso nesse meu amigo e de como ele
deve estar nesse momento ou se já concluiu a sua obra.
A
Comédia Humana é a maior obra literária da história da literatura universal. Parecido com
meu amigo que primeiro queria construir Paris, mas depois já queria erigir a
França inteira, Balzac, em determinado momento da sua invenção, resolveu subir o
nível de dificuldade e acrescentou um toque de originalidade, criando o cruzamento e retorno dos personagens em diferentes obras. Dito
assim, parece simples, mas se imaginarmos que o francês não dispunha de
computador e que era perfeccionista ao extremo ao ponto de criar uma biografia
real dos milhares de personagens que criou com planos minuciosos de aparição e desaparecimento
em determinado livro, capítulo ou estrutura narrativa, é fácil perceber a
dimensão exagerada da dificuldade que engendrou a si próprio. Escrevendo para ganhar dinheiro, com câimbras, dores na coluna, nos omoplatas, nas
articulações das mãos, nos dedos, sofrendo de hipertensão, quase cego, perseguido por agiotas, com fome,
Balzac se submeteu a uma rotina de quatorze a dezoito horas por dia de trabalho,
todos os dias, e, em trinta anos de escrita ininterrupta, e mais de 100.000
xícaras de café fortíssimo, concluiu dezessete volumes, doze mil páginas,
noventa e seis obras, e criou mais de dois mil e quinhentos personagens que se
cruzavam e retornavam ora numa obra ora noutra. Incompreendido pela sua
originalidade, nunca foi bem aceito pela crítica. Com 51 anos, morreu de cansaço,
pobre e cheio de dívidas.
Milhares
de biógrafos dedicaram a vida a estudá-lo e falharam.
Talvez
porque Balzac e a Comédia Humana não tenham sido criados para serem estudados, mas sim
vividos.